Nas entrelinhas: Ampliação do governo barrará o golpismo

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Vivemos o maior retrocesso desde a redemocratização. Lembra o clima às vésperas da posse de JK

É difícil entender a tese de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não ampliou o suficiente a coalizão de governo. Ontem, sinalizou que entregará três ministérios ao PSD e três ministérios ao União Brasil, além dos três que já negociou com o MDB. Igualmente é incompreensível a tese de que “o centro está na periferia do governo”. MDB, PSD e União Brasil estão onde sempre estiveram. Quem está se deslocando em direção ao centro, e até um pouco além, é Lula, tudo com objetivo mais do que justo de garantir apoio no Congresso e neutralizar o golpismo do presidente Jair Bolsonaro.

O petista ganhou a eleição por uma estreita margem de votos, lida com uma oposição de rua enfurecida e perigosa, que já começa a registrar ações terroristas — e enfrenta uma situação econômica delicada, por causa de um governo que gastou o que tinha e o que não tinha para tentar a vencer as eleições. Administra tensões com as Forças Armadas, que surpreendem pela atitude de alguns comandantes — que se recusam a reconhecer o novo comandante supremo, embora tenham se submetido às loucuras de Bolsonaro por uma questão de disciplina e hierarquia. Um deles chegou a dizer aos colegas que bastava uma ordem do atual presidente para impedir a posse de Lula.

Vivemos um ambiente que representa um retrocesso político, o maior desde a redemocratização, com a eleição de Tancredo Neves, em 1985. Lembra o clima político às vésperas da posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, quando o general Henrique Teixeira Lott impediu o golpe militar que setores conservadores das Forças Armadas e lideranças da UDN armavam para impedir que o presidente eleito e seu vice João Goulart, vencedores da eleição de outubro daquele ano, assumissem.

Durante a campanha, os ataques do udenista Carlos Lacerda contra JK, chamando-o de corrupto e amoral, não impediram a vitória do político mineiro, com 36% dos votos sobre seus oponentes: o militar Juarez Távora (UDN-PDC-PSB-PL), com 30%, Ademar de Barros (PSP), com 26%, e o integralista Plínio Salgado (PRP), com 8%, em 3 de outubro de 1955. Naquela época, não havia segundo turno, o que abria espaço para questionar a legitimidade de sua vitória, já que seus adversários estavam todos à direita. E juntos tiveram 64% dos votos.

Delirante, Lacerda mentia em seus artigos no jornal carioca Tribuna de Imprensa para deixar a classe média em pânico. Dizia que Jango, com a ajuda do argentino Juan Domingo Perón, do PCB e do dinheiro “espúrio” de JK, contrabandeava um arsenal bélico da Argentina para “implantar a ditadura sindicalista” no Brasil.

Um mês após a vitória da chapa JK-Jango, o coronel Jurandir Bizarria Mamede, ligado à Escola Superior de Guerra, no enterro do general Canrobert Pereira da Costa (chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e então presidente do Clube Militar), defendeu o golpe militar contra a posse dos eleitos, que se realizaria no início de 1956. Mamede questionava a legitimidade das eleições e “a corrupção e a fraude dos oportunistas e totalitários que se arrogam no direito de oprimir a Nação nessa mentira democrática”.

Contragolpe

O vice-presidente Café Filho (PSP) havia assumido o cargo e nomeado Lott como ministro da Guerra, que exigiu a punição de Mamede, mas não foi atendido pelo presidente. Entretanto, Café Filho se afastou do cargo por problemas de saúde. O presidente da Câmara, Carlos Luz, do PSD e próximo aos conservadores, assumiu a Presidência, para ter o mandato mais curto da história: três dias, entre 8 e 11 de novembro de 1955. No dia 12 de novembro, foi empossado na Presidência da República o primeiro vice-presidente do Senado, Nereu Ramos.

Um dia antes da posse de Ramos, Lott comandou 25 mil homens, que, em poucas horas, tomaram os pontos estratégicos do Rio, então Distrito Federal. O general divulgou uma nota direcionada aos comandantes militares exigindo “o retorno da situação aos quadros normais de regime constitucional vigente”. Ele garantia a posse de Ramos, que se comprometeu em assegurar a legalidade.

No dia 11 de novembro, o Congresso votou o impedimento de Carlos Luz, que acompanhado de Lacerda, Mamede e parte do ministério se refugiaram no navio “Tamandaré”.

Os golpistas pretendiam estabelecer um governo paralelo em São Paulo com o apoio do governador Jânio Quadros, mas o plano fracassou. Amedrontado, Lacerda tentou fugir do país mesmo com as garantias de sua imunidade parlamentar. Buscou abrigo nas embaixadas do Peru e de Cuba, que lhe forneceu asilo político. Antes do embarque para Havana, ainda sob o jugo de Fulgêncio Batista — derrubado em 1959 pela Revolução —, o deputado escondeu-se durante três dias em uma caixa-d’água seca.

O presidente assumiu em 1956 e Lott foi seu ministro da Guerra. Em janeiro de 1959, o general abandonou a caserna e foi transferido para a reserva remunerada como marechal. A popularidade conquistada em novembro de 1955 garantiu sua nomeação como candidato na eleição de 1960, com Jango como vice.

Como as eleições a presidente e vice eram separadas, Jânio venceu a eleição — e Jango também. Mas essa já é outra história.