Os governadores Cláudio Castro (PL) e Tarcísio de Freitas (PR) endossaram a escalada das ações policiais como política de segurança e, simultaneamente, um ativo eleitoral
Como jovem repórter dos jornais O Dia e a Notícia, no começo dos anos 1970, trabalhei na Baixada Fluminense, mais precisamente em Duque de Caxias (RJ). Como esses veículos alavancavam suas vendas com notícias policiais, a sucursal local disputava a manchete do jornal um dia sim e o outro também, por causa da violência que existia naquela região, onde antigos laranjais foram loteados e transformados numa espécie de terra de ninguém.
O falecido repórter Airton Assis, meu colega, realizava todos os dias uma ronda pelas delegacias da região, que havia se tornado uma das mais violentas do país. Era raro o dia em que terminava o périplo pelas delegacias dos distritos de Nova Iguaçu, Nilópolis e São João de Meriti sem o registro de um latrocínio, um feminicídio ou, principalmente, uma execução policial.
Naquela época, o “Esquadrão da Morte” agia abertamente. Em Duque de Caxias, cidade do famoso deputado Tenório Cavalcanti, que já não era tão temido, o delegado Mauro Magalhães adotava a política de registrar as execuções como legítima defesa. Um dos policiais lotados na sua delegacia, conhecido como “Japonês”, era exímio atirador e sempre levava a melhor no “confronto com os bandidos”, segundo os registros da delegacia.
No 6º Batalhão da Polícia Militar, violentíssimo, o jovem tenente Folly ficara famoso ao executar 12 integrantes de uma quadrilha que havia se refugiado num motel da Rodovia Presidente Dutra após perseguição policial e resistira à prisão. O legista da delegacia, conhecido como Carequinha, era notório necrófilo.
O “Esquadrão da Morte” surgiu após a morte do detetive Milton Le Cocq d’Oliveira, ex-integrante da guarda pessoal de Getúlio Vargas, reconhecido como investigador capaz de elucidar casos complexos. Morreu em 27 de agosto de 1964, durante confronto com um bandido chamado Cara de Cavalo, o que levou à mobilização de dois mil policiais para vingá-lo. Cara de Cavalo foi morto com 52 tiros.
A morte de Le Cocq gerou forte reação nos meios policiais, que resultou na criação da “Escuderia Le Cocq”, cujo símbolo era uma caveira de pirata e a sigla E.M. O velho Esquadrão Motorizado da Polícia Especial inspirou a marca do “Esquadrão da Morte”, cuja assinatura era o grande número de tiros durante as execuções.
Bandido morto
O “Esquadrão da Morte” reproduzia as mesmas práticas dos órgãos de repressão do regime, que caçavam e exterminavam oposicionistas, como o ex-deputado Rubens Paiva, cujo corpo nunca apareceu, ou o jornalista Vladimir Herzog. Os policiais agiam com uma espécie de “poder extralegal”, que não respeitava os direitos humanos, muitas vezes em colaboração com as agências de repressão política do regime, como era o caso da Oban, do delegado Sérgio Paranhos Fleury.
A expressão “Bandido bom é bandido morto!”, que resumia tudo, seria até o slogan da campanha eleitoral do delegado José Guilherme Godinho, o Sivuca, que chegou a se eleger deputado estadual no Rio de Janeiro, no começo dos anos 1980. Também oriundo da Polícia Especial, Sivuca se notabilizou quando o então secretário de Segurança Pública, Luís França, o convocou para fazer parte do grupo “Doze homens de ouro”, liderado pelo detetive Mariel Mariscot, com o objetivo de “limpar a cidade”.
Boa pinta e bon-vivant, Mariel seria expulso da polícia e acabou executado, porque resolveu disputar o controle dos pontos de jogo de bicho da região. Como as milícias e policiais corruptos de hoje, envolvera-se com agiotagem, prostituição, tráfico de drogas e execuções de encomenda. Quando cunhou a frase “Bandido é bandido, polícia é polícia, como a água e o azeite, não se misturam”, o assaltante de bancos Lúcio Flávio Vilar Lírio referia-se a Mariel e aos seus achaques, que denunciou. Morreu com 28 facadas no Presídio Frei Caneca.
À época, em São Paulo, presos eram retirados do antigo Presídio Tiradentes e executados na periferia. O jurista e promotor de justiça Hélio Pereira Bicudo, que investigou o Esquadrão da Morte durante 364 dias, provou a conexão entre seus integrantes do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Na manhã desta quarta-feira, 10 pessoas morreram e cinco ficaram feridas durante uma operação das polícias Militar e Civil no Complexo da Penha, Zona Norte do Rio. Dois feridos são policiais militares do Bope. Em São Paulo, 16 pessoas morreram desde o início da Operação Escudo, realizada na Baixada Santista, no litoral de São Paulo, deflagrada na última sexta-feira, após execução de um PM da equipe Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) durante patrulhamento. O suposto responsável se entregou à polícia.
Os governadores do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), e de São Paulo, Tarcísio de Freitas (PR), endossaram a escalada das ações policiais, com a ressalva de que eventuais excessos serão punidos. Na verdade, ambos as veem como política de segurança e, simultaneamente, ativo eleitoral. Entretanto, o emprego desproporcional da força tem a eficácia duvidosa, como demonstrou o “Esquadrão da Morte”. Como se sabe, por definição, não existe crime organizado sem conexão com agentes do aparelho de Estado.