Nas entrelinhas: A vitória de Biden

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A gravidade do que Trump está fazendo, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a ordem democrática dos Estados Unidos, o regime republicano mais antigo e estável do planeta

Ao contrário do republicano Donald Trump, que se declarou reeleito e prometeu contestar o resultado da apuração das eleições à Presidência dos Estados Unidos na Suprema Corte, o candidato democrata Joe Biden não cantou vitória antes da hora. Aguarda a conclusão da apuração dos votos em todos os estados, embora Arizona, Nevada e Wisconsin, desde a tarde de ontem, e Michigan, no começo da noite, já sinalizassem a vitória democrata, que ainda podem virar o resultado na Pensilvânia e ampliar a margem sobre os republicanos. Trump, porém, não quer deixar a Casa Branca, está fazendo tudo para melar a apuração dos votos e pode levar os Estados Unidos à inédita crise institucional, o que torna o pleito ainda mais paradigmático.

O sistema eleitoral norte-americano é complicado, difere de todos os demais países democráticos. As eleições nacionais são para a Câmara dos Deputados, o Senado e a Presidência. Há um total de 435 representantes na chamada Câmara Baixa (House of Representatives) do Capitólio americano, com mandato de dois anos. A cada 10 anos, um censo é realizado para contabilizar a população e dividir essas cadeiras. No Senado, a Câmara Alta, cada estado tem dois representantes, independentemente do tamanho de sua população, totalizando 100 senadores, com mandato de seis anos.

Há somente dois partidos grandes, o Partido Republicano e o Partido Democrata; os pequenos só têm abrangência estadual ou local. O sistema eleitoral foi criado em 1787, pela Constituinte, fruto da Revolução Americana. O pacto da Independência firmado pelos estados e as colônias, que se relacionavam diretamente com a administração britânica — o nome já diz, Estados Unidos da América —, estabeleceu um sistema que lhes garantisse a maior autonomia possível em relação à União. Por isso, o presidente não é eleito pelo voto popular direto, como ocorre no Congresso (Câmara e Senado). A instituição que escolhe o presidente é o Colégio Eleitoral, que tem previsão constitucional, formado por delegados indicados pelos estados. Foi a maneira encontrada para manter a influência dos estados e, assim, mitigar a decisão da maioria dos eleitores.

Realinhamento
Por isso, é possível que um candidato ganhe pelo voto popular, mas perca no Colégio Eleitoral. Foi o que ocorreu nas eleições de 2016 com Hilary Clinton e Donald Trump, e em 2000, quando o democrata e então vice-presidente Al Gore perdeu as eleições para George W. Bush. Antes, isso só havia ocorrido em 1876 e 1888. A quantidade de delegados dos estados é igual ao número de senadores e deputados. A Califórnia tem 55 delegados no Colégio Eleitoral porque tem 53 representantes na Câmara mais dois senadores. Montana, Wyoming, North Dakota, South Dakota, Alasca têm três delegados, que incluem seu único representante na Câmara e os dois senadores. Washington, DC, tem três delegados, mesmo sem representantes no Congresso Nacional. Há 538 delegados no total, vence quem obtiver maioria simples: 270 votos. Com 70 milhões de votos, Biden tinha 248 delegados no momento em que Trump, que contabilizava 214 delegados, tentava paralisar a apuração.

O mundo acompanha as eleições norte-americanas porque sabe que os Estados Unidos são a principal potência mundial em termos econômicos, tecnológicos, científicos e militares. A política de Trump, nacionalista e reacionária, teve muito mais impacto nas democracias do Ocidente do que no Oriente, embora o eixo de sua confrontação fosse com a China, um regime comunista, e o Irã, um Estado teológico. A presença de Trump na Casa Branca foi disruptiva até mesmo em relação ao chamado “sonho americano”. A gravidade do que está fazendo agora, ao tentar melar as eleições, é a ruptura com a própria ordem democrática dos Estados Unidos; isso servirá de exemplo para outros governantes com mentalidade autoritária, em momentos de apuros eleitorais. Apesar do anacronismo do seu sistema de votação, a democracia americana é o regime republicano mais antigo e estável do planeta.

O presidente Jair Bolsonaro é sócio da derrota de Trump, no qual apostou suas fichas como um jogador compulsivo na política. O estrago pode ser ainda maior se insistir na narrativa de que houve fraude na apuração, porque isso significaria questionar a legitimidade do futuro presidente dos Estados Unidos. Com a vitória de Biden, haverá um grande realinhamento na política mundial, na qual estaremos na contramão. A não ser que o governo Bolsonaro faça uma revisão das políticas externa, ambiental e de direitos humanos.