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Nas entrelinhas: A cortina que encobre a viagem de Lula a Cuba

Publicado em Brasília, China, Cuba, EUA, Governo, Guerra, Política, Política, Rússia, Transportes, Ucrânia

O embargo americano proíbe operações em qualquer porto nos EUA, por seis meses, de navios que atracarem em Cuba e promove retaliações financeiras às empresas que se instalam na ilha

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ontem, na cúpula do G77 China, em Cuba, voltou a pedir que países em desenvolvimento tenham financiamento para transição energética. O petista defendeu que este grupo “não tem a mesma dívida histórica dos ricos”. Para Lula, o financiamento climático deve ser assegurado aos países em desenvolvimento “segundo suas necessidades”. Defendeu a “industrialização sustentável” e lembrou que os países ricos têm uma “dívida histórica” pelo aquecimento global.

Lula assumirá a presidência do G20 no ano que vem e pretende propor a criação de um Grupo de Trabalho em Ciência, Tecnologia e Inovação voltado para os países em desenvolvimento. A visita de Lula ocorre às vésperas de sua viagem aos Estados Unidos, para abertura da Assembleia Geral da ONU, na qual se encontrará com o presidente norte-americano, Joe Biden, e terá uma nova oportunidade de se reunir com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, mas isso não consta de sua agenda.

Projetado para navios do tipo New Panamax, que transportam até 12,5 mil contêineres de 6 metros de comprimento por viagem, o Porto de Mariel nunca recebeu uma dessas embarcações. Criada nos moldes das Zonas Econômicas Especiais da China, as ZEEs, a zona de Mariel prevê incentivos fiscais, como impostos zerados sobre mão de obra e sobre a produção nos dez primeiros anos, facilidades de infraestrutura, como o fornecimento de água e energia, e acesso fácil aos mercados do Caribe.

Mas essa estratégia não deu certo. Foi concebida para um futuro diferente do mundo atual, em que os Estados Unidos e a China estão em uma guerra comercial. Em 2016, havia centenas de empresas interessadas em se instalar em Cuba, graças à sinalização de novas relações entre os Estados Unidos e Cuba, após o ex-presidente Barack Obama autorizar a instalação em Mariel de uma fábrica de tratores. Mas Donald Trump ganhou as eleições e o bloqueio econômico dos Estados Unidos recrudesceu.

Reescalonamento da dívida

No Brasil, o governo Bolsonaro só faltou romper as relações diplomáticas com Cuba. Desde o segundo semestre de 2018, Cuba não paga as parcelas dos financiamentos assinados em 2009 e 2013. A dívida atualizada de Cuba com o banco chega a US$ 520 milhões, ou seja, cerca R$ 2,5 bilhões. O embargo americano proíbe operações em qualquer porto nos EUA por seis meses de navios que atracarem em Cuba e promove retaliações comerciais e financeiras às empresas que se instalam na ilha.

No encontro de Lula com o presidente cubano, Miguel Diaz-Canel, a renegociação da dívida com o BNDES é a pauta principal. O governo brasileiro fala em “reescalonamento” para adequar o regime de pagamento a algo que Cuba possa cumprir. A ilha vive uma crise continuada, desde o fim da União Soviética. Recebe alguma ajuda da Rússia e da China, mas sofre com a redução dos turistas e a guerra da Ucrânia.

Quando Miguel de Cervantes mandou Dom Quixote viajar, rasgou a cortina mágica, tecida de lendas, que estava suspensa diante do mundo. A vida surgiu nua e cômica na sua prosa. “O mundo, quando corre em nossa direção no momento em que nascemos, já está maquiado, mascarado, pré-interpretado. E os conformistas não serão os únicos a ser enganados; os seres rebeldes, ávidos de se opor a tudo e a todos, não se dão conta do quanto também estão sendo obedientes, não se revoltarão a não ser contra o que interpretado (pré-interpretado) como digno de revolta”, lembra o escritor tcheco Milan Kundera (A Cortina, Companhia das Letras).

A ideia do “homem novo”, da qual tanto se jactavam os dirigentes cubanos, fora sufocada pelo anacronismo do “modelo soviético”, apesar da alegria e criatividade do povo. Havia expectativa de que a sucessão de Fidel traria mudanças, ma Raúl Castro fez tímidas aberturas, insuficientes para que o país seguisse o modelo adotado, por exemplo, pelo Vietnã. Mas Cuba está para os Estados Unidos como Taiwan para a China. A diferença é que o mais sofisticado e competitivo produto cubano é charuto artesanal da Cohiba, os melhores do mundo, enquanto o da ilha rebelde chinesa são os chips da TSMC, que também dominam o mercado mundial. A razão é política.