“Adeus, Lênin”, a sátira se aplica a Cuba, Nicarágua e Venezuela

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É preciso aguardar as conclusões do Foro de São Paulo para saber se o encontro será um “aggiornamento” ou um “déjà vu” politico.

Em 1989, pouco antes da queda do muro de Berlim, a sra. Kerner (Katrin Sab) entra em coma e, assim, permanece durante o processo de unificação da Alemanha. Vivia no regime comunista da antiga República Democrática Alemã (RDA), o lado oriental, e acorda na ordem democrática e capitalista da antiga Alemanha Ocidental.

Berlim Oriental é outra cidade, muito diferente, o que preocupa seu filho, Alexander (Daniel Brühl), que temia o impacto das mudanças na saúde da veterana militante do Partido Socialista Unificado Alemão (PSUA), comunista. Isso faz com que procure esconder de sua mãe as mudanças em curso. Porém, quando ela sai do coma, as coisas se complicam.

O filme Adeus, Lênin, o líder comunista da Revolução Russa de 1917, é uma comédia dramática alemã de 2003, dirigido por Wolfgang Becker, que fez muito sucesso nos cinemas e, ainda hoje, merece ser visto. Becker usa como plano de fundo personagens reais como Erich Honecker, líder comunista que governou a RDA de 1971 a 1989; Mikhail Gorbatchov, protagonista da perestroika a partir de 1985 e da autodissolução da antiga União Soviética (URSS), em 1991; e Helmut Kohl, chanceler da Alemanha reunificada. O anti-herói é o primeiro astronauta alemão, Sigmund Jähn, um dos tripulantes da espaçonave soviética Soyuz 31, que se tornara motorista de táxi depois da reunificação — ou seja, um símbolo da derrocada do “socialismo real” no Leste Europeu.

Em 1989, Alexander é um jovem de Berlim Oriental que vive com a mãe, a irmã e uma sobrinha, após seu pai abandonar a família e fugir para o Ocidente. Christiane era uma professora dedicada à construção do “homem novo” e se considerava casada com o socialismo. Por essa razão, sofre um ataque cardíaco quando seu filho é preso num protesto contra o regime comunista. Passa oito meses em coma e, quando acorda, o mundo era outro.

Como outra parada cardíaca lhe seria fatal, o sentimento de culpa faz com o filho crie um mundo paralelo, cenográfico, no qual velhas embalagens de alimentos são exumadas e vídeos caseiros são produzidos para reviver as glórias do antigo regime. Wolfgang Becker faz a crítica aos que ficam prisioneiros do passado, mas, ao mesmo tempo, enaltece a lealdade do filho que tenta, a todo custo, evitar novos sofrimentos da mãe.

O apadrinhamento do Foro de São Paulo, que se reúne em Brasília até domingo, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lembra um pouco o jovem Alexander de Adeus, Lênin. Esse paralelo não tem nada a ver com a narrativa da extrema direita, que demoniza a esquerda e chama todo mundo de comunista.

A reunião não ocorria há três anos, é legitima e pode ter um papel positivo na política latino-americana, dependendo de suas conclusões. Com delegações da sociedade civil e de governos de 23 países da América Latina esperados em Brasília, o evento começou ontem no Hotel San Marco, no Setor Hoteleiro Sul.

O problema é que a política de boa vizinhança adotada por Lula em relação aos países do continente também representa o endosso aos regimes autoritários de Cuba e da Nicarágua, além da Venezuela, de Nícolas Maduro, que Lula classificou como uma “democracia relativa”, ontem, durante entrevista à Rádio Gaúcha. O presidente atravessou a rua para escorregar numa casca de banana. Esse conceito de democracia relativa foi utilizado pelo presidente Ernesto Geisel, quando tentou institucionalizar o regime militar por meio de uma abertura lenta, gradual e segura, durante a qual sofreu derrotas eleitorais desastrosas para o regime. Mas endossou a repressão à oposição.

Déjà vu político

Lula deu a declaração ao ser questionado sobre o motivo de setores da esquerda insistirem em defender o regime de Maduro. Em maio, havia defendido o presidente venezuelano e seu “bolivariano”, com o argumento de que as acusações sobre a Venezuela ser uma ditadura fariam parte de uma “narrativa”. A declaração repercutiu mal dentro do próprio encontro de presidentes e foi rebatida pelos do Uruguai, Lacalle Pou (um conservador) e do Chile, Gabriel Boric (um socialista).

“A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil. O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Gosto de democracia porque me fez chegar à Presidência da República pela terceira vez”, disse Lula, para espanto generalizado.

A frase é duplamente infeliz, porque revela, aí sim, uma narrativa falsa em relação à realidade política do regime de Maduro, que se mantém no poder por meio de fraudes eleitorais, e uma visão instrumental da democracia, como via de acesso ao poder pessoal, em vez de um valor universal para a sociedade.

É preciso aguardar as conclusões do Foro de São Paulo para saber se o encontro será um “aggiornamento” ou um “déjà vu” politico. O galicismo tem tudo a ver com a situação, porque descreve a sensação desencadeada por um fato presente, que se parece estranhamente com uma situação específica já presenciada: li este livro? Vi este filme?

O cérebro possui a memória imediata, que a gente logo esquece; a de curto prazo, que dura horas ou dias; e a de longo prazo, que dura até anos. O déjà vu ocorre quando os fatos que estão acontecendo são armazenados diretamente na memória de longo ou médio prazo, sem passar pela imediata, o que nos dá a sensação de já terem ocorrido.