Nas entrelinhas: A regra nos presídios

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Há algo mais de muito errado no sistema prisional. Talvez uma espécie de acordo tácito entre autoridades carcerárias e os chefões do tráfico para manter a paz

O presidente Michel Temer resolveu recorrer às Forças Armadas para impor a ordem nos presídios. Mas essa não é uma questão que possa se resolver apenas com as operações de varredura nos presídios com emprego de soldados ou fuzileiros navais, embora não exista mesmo outra alternativa nos casos onde a situação saiu completamente do controle, como aconteceu no Amazonas, em Roraima e no Rio Grande do Norte. Essa decisão foi tomada diante de informações dos órgãos de inteligência do governo federal de que as rebeliões poderiam ocorrer em outros estados, em particular no Rio de Janeiro, onde agentes penitenciários e policiais civis estão em greve.

É uma crise anunciada. Há décadas os especialistas vêm advertindo as autoridades de que o problema carcerário está aumentando. Os números disponíveis são mais do que suficientes para tornar evidente o tamanho do problema. Somente neste começo de ano, ou melhor, em duas semanas, 134 detentos foram assassinados nas prisões da forma mais brutal, com casos escabrosos de degola e esquartejamento. A opinião pública costuma encarar esse assunto anestesiada, mas, diante das cenas macabras exibidas nas redes sociais por detentos, a maioria das pessoas ficou chocada e a repercussão internacional foi enorme.

Mas não devemos nos iludir. O senso comum entre agentes penitenciários e policiais é que é vantajoso para a sociedade que os presos se matem. A maioria da população está se lixando para o que acontece nas prisões, até que a crise transborde para as ruas. Não é levado em conta o fato de que a matança é um sintoma de escalada da atuação das organizações criminosas, cada vez mais poderosas, especialmente o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. O protagonismo da facção Família do Norte (FDN) no massacre de Manaus foi uma reação à expansão do PCC, que ninguém se iluda.

O Brasil tinha 622.202 pessoas encarceradas em dezembro de 2014, segundo o último levantamento nacional. Desses detentos, 55% têm entre 18 e 29 anos, 61,6% são negros e 75% têm até o ensino fundamental completo. Ou seja, esse perfil demográfico mostra uma relação direta com as nossas desigualdades sociais, em especial quanto à distribuição de renda e à educação, além da discriminação racial. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos (2.217.000), China (1.657.812) e Rússia (644.237). O mais grave é o fato de que 40% dos presos são provisórios, ou seja, não foram julgados e condenados, o que revela mais uma vez que o nosso sistema judicial reproduz essas desigualdades.

Há muita divergência entre as autoridades quanto ao tratamento dado à questão. Uns defendem o endurecimento das penas; outros, a liberação do uso de drogas; alguns acham que separação dos detentos por facção resolve o problema, outros só aceitam a divisão por periculosidade. Enquanto não se chega a um acordo, os presídios se tornaram verdadeiros bunkers das quadrilhas que comandam o tráfico de drogas no país, mantendo seus líderes protegidos e possibilitando que o comando tenha pleno controle dos integrantes das quadrilhas que estão fora dos cárceres. Essa rede, porém, não poderia existir apenas se contasse com os familiares e os amigos; pelo contrário, sua existência está associada à corrupção na administração penitenciária e nas polícias Civil e Militar. O episódio de Manaus mostrou isso. Ou seja, o “sistema” se retroalimenta.

Regras do jogo

Há outras questões que precisam ser debatidas profundamente. A primeira, de responsabilidade do Congresso, é o fracasso da política de endurecimento das penas, a qual aumenta o estoque de presos. Essa tendência, caso não seja contida, acabará levando à aprovação da pena de morte, que já deve contar com o apoio da maioria da população. A segunda, é a morosidade da Justiça, que não julga os presos provisórios e deixa-os mofando na prisão, o que é uma forma de punição que extrapola o chamado devido processo legal. Tanto o Congresso como o Judiciário, nesse aspecto, são sócios da crise.

Há algo mais de muito errado no sistema prisional. Talvez uma espécie de acordo tácito entre autoridades carcerárias e os chefões do tráfico para manter a paz nos presídios e fora deles, desde quando o PCC tocou o terror em São Paulo, o que só serve para permitir que as quadrilhas se fortaleçam ainda mais. Essa parece ser uma espécie de regra do jogo, na qual os traficantes, e não as autoridades, estabelecem o próprio código de conduta. É aí que está o maior dos problemas.