Sem a reforma da Previdência não haverá boia de salvação

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POR ANTONIO MACHADO

Mais uma reforma da Previdência ameaça naufragar, sendo que desta vez o país começa a adernar e não há terra à vista. Os doutores da Câmara alegam que a reforma é impopular e eles têm uma reeleição a disputar, como se pudessem se salvar do naufrágio que se avizinha. Do governo de Michel Temer o que há a criticar nesse assunto é o tom demasiadamente recatado ao falar da situação abjeta das contas públicas herdadas da gestão passada. Talvez por se sentir cúmplice da tragédia ou por temer a opinião dos mercados, como se quem opera com papéis do Tesouro Nacional ignorasse a nossa penúria fiscal.

Deu no que se vê: muita gente duvida do enrosco fiscal e supõe que basta cobrar devedores do INSS, prender corruptos, elevar impostos, que tudo se resolve — da tendência de envelhecimento da população e de redução da natalidade aos privilégios de quem pode aposentar-se pelo último salário da ativa com menos de 55 anos, ou com 25 anos de contribuição. A defasagem entre tais gastos e a receita total de tributos já quebrou estados como o Rio de Janeiro, trincou a ordem federativa e em alguns anos vai consumir todo o Orçamento federal.

O líder do PMDB no Senado, Renan Calheiros, é um dos que acham não ter problema em bater na reforma proposta pelo seu próprio partido, surfando na impopularidade de Temer, para limpar sua imagem de réu em vários processos da Lava-Jato no STF visando a sua reeleição em Alagoas em 2018. Péssimo sinal à Câmara, onde começou a tramitação. A consequência está ai: mais de duas centenas de deputados da base de apoio do governo relutando apoiar o saneamento da Previdência. A reforma requer um mínimo de 308 votos a favor entre 513 possíveis.

Mais: economistas ligados aos lobbies das carreiras de Estado, que não querem ceder nenhuma regalia, sentem-se encorajados a negar que os regimes previdenciários sejam deficitários e tendam a esgotar o caixa público, tapeando incautos, até na Câmara, com teses fajutas. A verdade é que nem que a reforma fosse aprovada sem alterações, o que não acontecerá já que o governo assentiu amenizá-la, o deficit da Previdência será fechado nessa ou na próxima geração. O objetivo da reforma é poupar a sociedade da insolvência geral, além de criar condições de o Estado investir e prover o que lhe é intransferível.

O futuro foi penhorado

Já não há ao governo margem fiscal para gastar livremente mais que um décimo do seu Orçamento. Mais de 90% do que arrecada de tributos têm a destinação imposta por leis, de modo que o deficit se tornou recorrente, coberto com dívida emitida pelo Tesouro. E até quando? A dívida baterá em 76% do PIB este ano, se o PIB avançar 0,3% e o deficit primário confirmar a meta oficial (R$ 139 bilhões acima da receita total, estimada em R$ 1,3 trilhão).

Nessas contas, a carga tributária é de 33% do PIB, vai a 40% do PIB (nível de socialismo escandinavo) sem evasões. E a 49% com o custo parafiscal do deficit nominal. Numa boa, tais relações não descrevem um país com futuro. Nem dá para “pedalar” como nos tempos de Dilma Rousseff, com carga tributária asfixiante e quase 20% do PIB da dívida pública roladas em prazo curto pelo Banco Central, sinal de exaustão da capacidade do mercado em engolir novas emissões. O impasse fiscal é visível.

Onze anos de escassez?

A reforma da Previdência, assim como a indexação do gasto fiscal à inflação e o início do fim das desonerações dadas na gestão passada sem que alguém pusesse a mão na consciência, neste contexto, é uma medida saneadora para livrar a sociedade de anos de desgoverno, em que a corrupção assombrosa confirma o ocaso do sistema degenerado.

Como pensar diferente, se, conforme os cenários do Focus, boletim semanal do Banco Central, só se terá o superavit primário entendido como necessário para reverter a expansão da dívida bruta pública em relação ao PIB (cerca de 2% PIB) daqui a 11 anos? É óbvio que tal prazo longo demais prenuncia grave perturbação da ordem logo mais. Soa também óbvio que o ajuste fiscal requer crescimento econômico acelerado, função de empresas e famílias sem dívidas anormais e de juros civilizados. Tais quesitos não surgem por geração espontânea.

E 40 anos de equívocos

A pacificação da economia começa pelas contas do governo, e dentro delas do que foi viciado (as vantagens do funcionalismo) ou tratado sem zelo (as políticas sociais). Enquanto o giro da dívida pública sugar 72% dos recursos livres do país, vulgo poupança, como fez em 2016, segundo pesquisa do economista Carlos Antonio Rocca, é ocioso falar em desenvolvimento. Isso precisa ser explicado aos deputados. O que faz o progresso não é o nível de consumo, mas o investimento produtivo e as competências empresariais adquiridas pela competição externa. Há 40 anos repetimos o mesmo equívoco. E a conta chegou.

Risco de outro fracasso

Sob o risco da simplificação, o que se precisa reaver no Brasil é o que fez a economia, entre 1950 e meados de 1980, ter a maior taxa de crescimento no mundo — inspirador das reformas liberalizantes na China, segundo Michael Pettis, professor na Universidade de Pequim. O desenvolvimento sustentado toma forma com a primazia à formação de poupança doméstica capaz de financiar o investimento antes de um mercado de consumo de massa — o atalho trilhado no Brasil depois do colapso do modelo movido a inflação e dívida externa da ditadura.

A contraprova está no sucesso da Alemanha e Japão no pós-guerra; da China, enquanto o Brasil regredia; da Índia, aonde o governo de Narendra Modi conduz o maior programa de reformas no mundo. Tal era o foco de reformas semelhantes às atuais, inclusive da previdência, tentadas no primeiro governo Lula. Onde erramos? O Estado capturado por corporações, populismos de todos os tipos, políticos obtusos e setor privado fraco normalmente explicam o fracasso. Fracassaremos?

Brasília, 09h30min

Vicente Nunes