“Eu vou beber pra esquecer meus problemas. Eu vou beber pra esquecer minhas dívidas. Eu vou beber para esquecer minhas angústias. Eu vou beber que hoje eu quero alegria”
(Renato Fechine)
>> DIEGO AMORIM
Fernando* não se considera alcoólatra. “Eu? De jeito nenhum”, responde, convicto. Tem 25 anos e trabalha na área administrativa de um cartório da capital do país. Bebe — sozinho ou com os amigos — pelo menos três vezes por semana. Perdeu a conta dos dias em que bateu o ponto virado da farra na noite anterior, de ressaca ou, como ele diz, “doidão mesmo”. Certa vez, recorda aos risos, dormiu por quase uma hora no chão do banheiro do cartório, abraçado ao vaso sanitário para uso exclusivo de deficientes físicos. “Ali é mais espaçoso”, justifica.
Mesmo sem reconhecer ser dependente do álcool, Fernando percebe os prejuízos da bebida na vida profissional. “Sinto cansaço no corpo e na mente. Pensar fica mais difícil”, relata. Por mês, o jovem gasta, no mínimo, R$ 500 para “tomar uma e espairecer”. No dia seguinte, não consegue evitar o cochilo na frente do computador. Diz que vai entregar algum documento, mas, na verdade, passa em casa para descansar no meio do expediente. “O chefe só não percebe porque é muita gente.”
O álcool responde por 50% das ausências no serviço, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Encarado, quase sempre, de forma engraçada ou velada, o alcoolismo mina a produtividade no cartório onde Fernando trabalha e em milhares de empresas e órgãos públicos brasileiros. As consequências vão muito além dos atrasos e das faltas motivadas pela ressaca. O mau uso da bebida, que atinge todos os cargos e níveis, favorece acidentes — muitos, fatais — afastamentos por doenças e situações em que o funcionário está presente, mas não usa todo o potencial.
À conta do alcoolismo das empresas somam-se o aumento de gastos com horas extras, o comprometimento da qualidade do produto ou serviço, um maior desperdício de materiais, sem contar os prejuízos nas relações interpessoais. “Em um mundo cada vez mais competitivo, o alcoolismo provoca prejuízos imensuráveis, afetando a lucratividade das empresas”, sentencia Rita Brum, diretora da Rhaiz Soluções em Recursos Humanos.
Demissões
Cerca de 5% dos que assumem beber com frequência — um universo de 4,6 milhões de pessoas — já perderam o emprego no Brasil devido ao consumo exagero de álcool, de acordo com o levantamento mais recente do Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas (Inpad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A demissão por embriaguez, prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como justa causa, tem sido condenada pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), que recomenda o afastamento do trabalhador.
Estudos indicam que o índice de recuperação de alcoólatras quando acompanhados pelas empresas varia de 50% a 70%, enquanto os tratamentos na rede hospitalar registram média de 30%. “Antes, o auxílio era baseado na ‘chefia amiga’, no protecionismo. Hoje, os gestores estão entendendo melhor que um funcionário bêbado não traz lucro e que tratá-lo é importante para a empresa”, sustenta Rita Brum.
Os afastamentos do trabalho por problemas decorrentes do álcool costumam ser repetidos e prolongados, pontua o diretor do Departamento de Políticas de Saúde e Segurança Ocupacional do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Marco Antônio Gomes Pérez. “O etilismo é uma doença e gera incapacidade para o trabalho”, reforça. De 2009 a agosto do ano passado, foram autorizados 75.139 auxílios para trabalhadores com dependência do álcool. Se cada um deles recebeu apenas uma vez o benefício — o que é pouco provável —, o volume dessas concessões encostou nos R$ 40 milhões.
Somente na indústria brasileira, estima-se que um terço dos trabalhadores faz uso abusivo do álcool. “Muitos entendem como algo normal operar uma máquina depois de um dia de bebedeira. Mas nunca será”, comenta o diretor técnico da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV), Alberto Ogata. Há anos, estudos internacionais abordam a relação entre álcool e produtividade. A constatação se repete: quem faz uso exagerado da bebida corre maior risco e compromete os desempenhos intelectual e motor. “O problema ainda não é levado a sério pelo ambiente corporativo. Não basta querer tratar apenas quem chegou ao fundo do poço”, sublinha.
Intoxicação
O alcoolismo é mais frequente em algumas áreas, como a construção civil e os trabalhos noturnos. Porém, não existe regra quando se trata do vício. Funcionários satisfeitos com o que fazem, em atividades com pouca pressão, também podem ser sugados pelos efeitos da embriaguez. “Existe uma lista de prejuízos provocados pelo álcool em pessoas que não são consideradas dependentes”, alerta a psiquiatra Carolina Hanna, pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (GREA) e do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).
Mesmo quem bebe somente aos fins de semana tem o corpo intoxicado e leva um tempo para se recuperar. Quando ingerida em excesso, ainda que de maneira esporádica, a bebida traz consequências que podem atrapalhar a carreira, retardando promoções ou, no mínimo, impedindo o trabalhador de fazer benfeito as obrigações. “A norma social diz que o álcool é algo inofensivo. Isso acaba dificultando o processo de conscientização. Por isso, a negação é tão comum”, diz Hanna.
O professor Pedro* bebe dia sim, dia não. Ele não acha que o álcool tenha poder de atrapalhar as aulas que leciona em uma escola particular de Brasília, mesmo relatando já ter “conseguido um atestado” em uma segunda-feira para ficar em casa sofrendo a ressaca da farra do domingo. “Tem gente que fica ruim, mas eu não. Eu fico até melhor”, afirma.
O álcool pode até dar a sensação de alívio e bem-estar em um primeiro momento. Depois dos estímulos eufóricos, no entanto, a fase depressiva chega com a mesma intensidade. “Não existe essa história de beber para trabalhar melhor. O álcool diminui reflexos e afeta o raciocínio”, sustenta o psiquiatra Ernin Hunter. “O certo é que a bebida reduz a produtividade e causa uma série de transtornos emocionais”, emenda o educador financeiro Rogério Olegário.
(*) Nomes fictícios
Lei aumenta o custo para manter funcionários
Belo Horizonte — Se antes a legislação brasileira permitia ao empregador demitir por justa causa um funcionário alcoólatra, agora, a empresa corre o risco até de pagar indenização por dano moral à pessoa dispensada por esse motivo. “A embriaguez habitual é considerada doença. O colaborador precisa ser afastado do serviço, ter o contrato suspenso e receber o auxílio-doença”, afirma o desembargador José Eduardo de Resende Chaves Júnior, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais).
O artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em vigor desde 1943, mantém a embriaguez como um dos motivos para a demissão por justa causa. A norma não foi alterada, mas, nos últimos anos, o entendimento da Justiça caminhou no sentido oposto, aplicando indenizações que variam de acordo com o porte da empresa. “Se a pessoa doente perde o emprego, isso vira mais um motivo para ela beber”, diz o desembargador.
Em março, as empresas devem passar a ter um custo a mais com o funcionário afastado em razão da dependência do álcool. Entrará em vigor a norma determina que o empregador arcará com os primeiros 30 dias de afastamento, e não mais 15 dias. Somente a partir do segundo mês o valor será assumido pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
Tânia*, 49 anos, foi demitida duas vezes em razão do alcoolismo: a primeira de uma indústria de cerâmica em Santa Catarina; a segunda, da casa onde era doméstica. “Já dormi na escada do prédio dos patrões de tão embriagada. Não consegui chegar ao apartamento. Outra vez, quando eles viajaram, dormi na cama do casal e, quando eles chegaram, estava lá, toda vomitada.”
Atualmente, Tânia frequenta os Alcoólicos Anônimos. Largou o vício há 13 anos e voltou a trabalhar. “Comecei a beber na adolescência. O álcool me dava sensação de alegria, mas era passageira. Com o tempo, fui bebendo mais e mais: acetona, álcool puro, tudo”, recorda. “Hoje, está tudo diferente. Tenho trabalho e minha filha me reconhece como mãe”.
Para a empresa, a melhor estratégia é estender a mão ao colaborador. “Incentivar a qualidade de vida ajuda nesse sentido, aumentando a produtividade e afastando o funcionário do perigo do álcool em excesso”, recomenda Luís Testa, da empresa de recrutamento Catho.
DEPOIMENTOS
Vômito, sono e dor de barriga “Como domingo é meu dia folga, aproveito para beber com os amigos. Várias vezes vou trabalhar na segunda-feira ainda mal. Acaba que passo da conta com a bebida. Começo com a cerveja, mas logo emendo na vodca, entro na tequila e por aí vai. Do bar, vou direto para alguma festa e continuo bebendo. Claro que isso atrapalha meu trabalho. Já me cortei e me queimei na cozinha. No restaurante, tenho que cumprir metas, e o álcool tira os reflexos, me deixa desatenta e compromete o meu paladar na hora de experimentar as comidas. Um dia, fiquei tão doente de ressaca, que não consegui levantar da cama. Vomitava muito, sentia sono, dor de barriga. Consegui um atestado para não ir ao trabalho. Minha chefe ficou um pouco desconfiada, eu acho, mas deu certo.”Cozinheira, 27 anos
Sociedade é permissiva“As pessoas acham que alcoólatra é só a ralé. Não é. Meu marido era médico, de família de classe média alta, e morreu de cirrose aos 45 anos. Foi a pessoa que mais amei e mais odiei na minha vida. Ele saía para comprar pão de manhã cedo e tomava cachaça: não acreditava naquilo. Bêbado não é divertido, é doente e precisa ser tratado. Ele chegava ao consultório cheirando à bebida e dormia com a porta trancada, enquanto pacientes esperavam do lado de fora. Sempre foi muito inteligente, mas o álcool o impediu de progredir. Da noite para o dia, percebi que tinha um alcoólatra em casa. Hoje, considero um absurdo a maneira permissiva com que a sociedade lida com o álcool.”Viúva de alcoólatra, 56 anos
Brasília, 20h55min