O desertão artístico do governo Bolsonaro

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Auto-intitulados “sertanejos”, o grupo de artistas conservadores que se reuniu com Bolsonaro nessa quarta-feira nada tem a ver com a cultura popular que leva esse nome

LUIZ CALCAGNO

A palavra “sertão”, da qual deriva o nome do estilo musical “sertanejo”, vem do termo “desertão” – um grande vazio. O batismo é dos portugueses, embora a caatinga não seja, por assim dizer, um deserto. Nas crônicas dos colonizadores há referências, também, ao “sertão indiano” que, novamente, pouca relação tem com o nosso. Por isso, a palavra “desertão” se aplicaria muito mais para designar um estilo musical que, focado principalmente na exploração comercial, pouco ou nada tem a ver com as raízes sertanejas brasileiras. Em meio à maior crise na área cultural desde a redemocratização, foram representantes desse movimento que estiveram no Palácio do Planalto para manifestar apoio ao presidente Jair Bolsonaro nesta quarta (29/1).

Na primeira parte do clássico Os Sertões, epopéia nacional escrita por Euclides da Cunha, o autor se propõe a discorrer sobre a transformação da topografia brasileira do sudeste até a caatinga, no sertão nordestino. É o caminho traçado pelo jornalista junto a militares rumo ao arraial de Canudos, que chegaria ao fim em um massacre promovido pelo Exército Brasileiro e por policiais locais. Em seguida, o escritor descreve o sertanejo que, afirma, é, “antes de tudo, um forte”. Euclides traça uma análise profunda daquele povo que fez da sua fraqueza, a escassez, sua maior força. Esmagados entre o esquecimento do governo e os coronéis, grandes proprietários de terra e mandatários hereditários, entravam encourados na caatinga para buscar o gado. Um boi ou bezerro era, muitas vezes, a paga do trabalho duro.

Sabiam o que comer e de onde tirar água da vegetação escassa, árida e ouriça que, como o próprio sertanejo, também tornava-se vivaz e colorida após a estiagem. É uma gente que se desenvolve sob rudes circunstâncias. E as condições ambientais e socioeconômicas, no entanto, são fundamentais para a sedimentação de uma cultura e um modo de vida. A vestimenta, a devoção religiosa, o conhecimento da natureza e do território, a culinária, a arte, fosse música sertaneja, literatura de cordel, escultura ou a xilogravura, florescem sob uma estética específica, própria desse povo.

Ainda, é a profundidade dessa cultura, desse modo de vida, que acaba por se desdobrar em dois grandes movimentos indissociáveis da história do país: o religioso messiânico, que chega ao ápice com Antônio Conselheiro, no fim do Império e início da República e, posteriormente, o cangaço, que tem em Virgulino Ferreira, o Lampião, sua figura mais icônica, e se extingue sob o governo de Getúlio Vargas. Detalhe: ambas as figuras foram decapitadas pelo Estado e tiveram as cabeças expostas como exemplo. Tanto a cultura messiânica sertaneja quanto o cangaço são resultado, justamente do abandono, da fome, da miséria e da opressão do governo e das oligarquias contra os sertanejos. Sertanejos que fizeram dessa lida vida pujante, assim como quem extrai água do espinhoso mandacarú.

Embora os artistas que se encontraram com Bolsonaro na quarta tenham se apropriado há muito do termo “sertanejo”, na reunião, deram provas de que nada guardam, e até desconhecem a força e a profundidade dessa palavra. Primeiro, classificaram o presidente da República, que tem forte apoio do agronegócio, de “maior governante” da história do país. Ora, a monocultura extensiva, praticada no Brasil desde os primeiros anos de colonização, é marca registrada dos grandes proprietários de terra, incluso os coronéis, algozes do povo nordestino. Contratava a gente pelo mínimo e, também, a matava pelo mínimo.

Agromusical

A carta de apoio, lida por Cuiabano Lima, mais conhecido como “A Voz de Barretos”, fala de uma suposta proximidade da classe com a população. “Os artistas sertanejos, que percorrem todos os cantos desse grandioso Brasil e vivenciam todos os dilemas e dificuldades do povo brasileiro, encontraram no governo do presidente Bolsonaro essa postura de um governante que trabalha em prol de seu povo, de seu país”, afirma o texto. É verdade que os artistas que estiveram com o presidente tem grande adesão da população. Daí, inclusive, deriva sua fama, fenômeno coletivo que depende diretamente dos admiradores para ocorrer.

Mas, apesar da alegada proximidade com o povo, pediram o fim da meia entrada e a regulamentação de normas para flexibilizar as contratações de trabalhadores no setor. Certamente, gente bem mais pobre que os artistas e empresários. O presidente, claro, se mostrou sensível às reivindicações dos apoiadores. Disse, inclusive, que participará da 65ª edição Festa do Peão de Barretos, com a condição de dar  duas voltas na arena montado em um cavalo. Trocando em miúdos, são artistas sertanejos que nada tem de sertanejos. O agro pode até ser pop, mas está longe, muito longe, das raízes da cultura popular.

Vicente Nunes