O cálculo da irresponsabilidade

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LUIZ CALCAGNO

A demissão de Sérgio Moro do governo retirou o foco das atenções do coronavírus temporariamente. O número de mortos, porém, não para de crescer. Para avaliar esse aumento em comparação com a postura do Executivo federal é importante lembrar de um fato recente, mas quase esquecido ante o acúmulo de crises políticas que o Brasil acumulou no correr das últimas semanas. Trata-se da confluência de forças que levou à exoneração do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta em 16 de abril (à época, o país acumulava 1924 mortes por coronavírus).

Que as articulações contaram, até mesmo, com conspirações entre ministros pertencentes à ala mais radical do governo, isso é público e notório. Mas, é importante, para jogar luz sobre as mortes e sobre a relevância que o governo dá às vítimas, revisitar as expectativas do grupo olavista em relação ao coronavírus quando Mandetta ainda mantinha-se firme no cargo à despeito do ciúme infantil e do negacionismo tácitos do presidente da República e seguidores.

Quando o ministro da Cidadania de Jair Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, e o ex-ministro da mesma pasta, Osmar Terra, foram flagrados conspirando contra Mandetta, fizeram, também, as próprias projeções do número de mortos. Onyx falou em 4 mil pessoas, e Terra, entre 3 mil e 4 mil. As expectativas de ambos, evidenciou, na virada deste domingo (26/4), para segunda (27), o alinhamento da dupla com a tese bolsonarista da “gripezinha”. E reforça essa percepção o fato de terem errado. Para acertarem, o país precisava ter passado pelo pico de contaminações e mortes, que ainda não chegou. O número de mais, mães, filhos, tios, irmãos e avós mortos chegou a 4.205 e continua a crescer.

Surpreende que tanto Onyx quanto Terra tenham formação profissional com forte presença do método científico nos respectivos cursos superiores. O primeiro se formou em veterinária, e o segundo é médico. Ainda assim, os dois insistiram em negar e menosprezar, tal qual Jair Bolsonaro, as recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo isolamento social, além das informações oficiais de outros países, como Itália e Espanha, que menosprezaram a estratégia e pagaram pelo erro com milhares de mortos a mais e um prejuízo econômico ainda maior do que enfrentariam se tivessem isolado a população mais cedo para enfrentar a pandemia.

E não é apenas que o número de mortos passou em 205 pessoas mortas as piores expectativas de Onyx Lorenzoni e Osmar Terra. Conforme consta no Painel coronavírus, divulgado oficialmente pelo Ministério da Saúde, agora sob a batuta do oncologista Nelson Teich, a primeira morte por coronavírus no Brasil ocorreu em 17 de março. No dia 29 do mesmo mês, isto é, 12 dias depois, o número de pessoas mortas chegou a 114 e, em 10 de abril, passados 24 dias da primeira morte, o cálculo chegou a 1.054.

A conspiração de Onyx e Terra veio à tona após um repórter ligar para o médico, deputado e ex-ministro na manhã de 9 de abril, uma quinta-feira. Ele atendeu o profissional, mas não falou nada e nem desligou o aparelho, e o jornalista escutou a conversa da dupla. Na data, o número de mortos pelo coronavírus estava em 941. Um dia depois, chegaria a 1054. E, se o Brasil levou 24 dias para passar de um para mais de mil mortos, em apenas sete dias (oito a contar da conversa entre os ministros), o número de pessoas que perderam a vida pelo vírus chegou a 2.141, marca registrada em 17 de abril. Em resumo, de 24 dias, o intervalo de tempo a cada mil mortos caiu para sete.

Na sequência, esse intervalo de tempo voltou a estreitar-se. Em 22 de abril, cinco dias depois, o número de pessoas mortas chegou a 3.313. Apenas três dias depois, no sábado (25), o Brasil chegou à marca dos 4.016 mortos, já desmentindo as confabulações bolsonaristas de Onyx, Terra e demais olavistas. Não é preciso ser matemático para entender que o intervalo de tempo necessário para cada mil mortos caiu de 24 dias para apenas três, que pode diminuir ainda mais, e o risco que isso representa para a população. Algumas figuras do governo e, também, apoiadores deveriam ir à público para, no mínimo, pedir desculpas pela politização dos fatos.

E a moral da história é que a ciência caminha baseada, justamente, em fatos. E os fatos são neutros, selvagens, e não levam em conta a posição política ou os desejos de quem pretendem devorar e dos que os enxergam. Fechar os olhos para o que acontece, por outro lado, pode levar à decisões equivocadas e a mais mortes. Ignorar os fatos é o mesmo que fechar os olhos ao atravessar a rua, acreditando que, por não vê-lo, o caminhão não poderá atingi-lo. Fica o recado para governadores que falam em reabrir o comércio enquanto o número de vítimas e contaminados acelera curva acima.

E um adendo para fechar: as somas apresentadas assustam, mas, por falta de testes, é seguro afirmar que o número de contaminados e mortos no país ainda é maior do que o levantamento do Ministério da Saúde mostra.

Vicente Nunes