JOGADOS ÀS TRAÇAS

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“De copo sempre cheio e coração vazio, estou me tornando um cara solitário e frio” (Juliano Tchula e Marília Mendonça)

>> DIEGO AMORIM

Anápolis (GO) — Sorrateiramente, o álcool fez ruir a fortuna de uma tradicional família de Anápolis, município goiano a 160km de Brasília. Em maio do ano passado, o delegado de polícia Manoel Vanderic recebeu uma denúncia anônima: um senhor de 67 anos estaria abandonado em uma casa localizada em um bairro nobre. O caso estimularia, ainda naquele mês, a criação da Delegacia do Idoso da cidade, que hoje recebe, em média, 10 denúncias por dia, 40% delas relacionadas ao álcool.

No endereço indicado pelo informante, Vanderic encontrou um idoso bêbado, largado em um colchão sujo e rasgado. O ambiente fedia a fezes e urina. O teto da espaçosa residência já não tinha todas as telhas. “Era uma cena de horror”, lembra o delegado. O desenrolar da investigação mostrou que a família da vítima, um empresário bem-sucedido do segmento de oficinas, chegou a ter um patrimônio de R$ 2 milhões, montante torrado pelo álcool — o que restou dos bens está jogado às traças.

As bebedeiras do ex-comerciante eram quase sempre acompanhadas de jogos de azar, hábito que, pelas contas de um dos filhos, teria consumido cerca de R$ 200 mil das economias da família. Nos bares de Anápolis, como ocorre em muitas outras cidades do país, exploradores das proibidas máquinas de caça-níqueis se aproveitam da embriaguez dos frequentadores e montam esquemas para sugar o dinheiro dos mais velhos.

Pesquisas mais recentes indicam que pelo menos 9% das pessoas com mais de 65 anos no Brasil são alcoólatras: um contigente de 1,3 milhão de homens e mulheres que, quando têm acesso às aposentadorias, consomem o dinheiro com a bebida e com os tratamentos advindos dela. O alcoolismo potencializa os gastos com a saúde na velhice, uma vez que aumenta os riscos de quedas, lesões, demências e agravamento de doenças crônicas.

Nos idosos, o álcool age mais rápido e de maneira acentuada. O ex-comerciante de Anápolis que se afundou na bebida adoeceu a mente e o corpo, além de ter amargado a falência financeira. Sem dinheiro nem mesmo para comer, ele não dispensava doações de fiéis de uma igreja evangélica a duas ruas de onde morava. Passava o dia perambulando pelos bares e pela cidade. Quando cansava, retornava à casa abandonada pela mulher e pelos cinco filhos, todos indiciados por abandono e apropriação indevida da aposentadoria do pai.

No endereço ao lado da casa em que ele repousava — hoje com as portas trancadas —, o Correio localizou um dos herdeiros da embriaguez. Sem querer ser identificado, o filho de 40 anos conta que seguiu os mesmos caminhos do pai: trabalha com retífica de motor e também caiu no alcoolismo, embora faça questão de dizer que largou a bebida “há pouco tempo”.

O patriarca, conta ele, ainda não conseguiu se livrar da cachaça. Está vivendo com a mãe em um sítio afastado da cidade, “dando muito trabalho”, afirma ele. “A pinga destruiu a vida do meu pai e quase a minha. Todo o dinheiro era para a bebida. Hoje, ele não tem nada. Se não fosse o álcool, sei que estaríamos ricos”, comenta.

Invalidez

Outro caso emblemático do primeiro ano da Delegacia do Idoso em Anápolis é o de uma mulher de 49 anos, que, maltratada pela bebida, não aparenta a idade que tem: o álcool a envelheceu da pior maneira. Os médicos disseram a ela que foi justamente o excesso de álcool o principal responsável pelo acidente vascular cerebral (AVC) que quase a matou.

Abandonada pelas três filhas e vivendo em um abrigo público, hoje a mulher luta para se manter sóbria. Entre uma crise de abstinência e outra, lembra que chegava a beber uma garrafa de pinga sozinha antes mesmo do café da manhã. “O álcool só me deu prejuízo. Fico revoltada, porque eu poderia estar trabalhando, ganhando meu dinheiro e estou aqui parada”, reclama, segurando o choro.

Mãe solteira, a mulher já trabalhou com cerâmica e reciclagem para sustentar a família. Nunca gostou de ficar parada. Agora, está aposentada por invalidez em plena idade ativa. “Sei que a vida da gente é essa história de cair e levantar, mas eu já levei tanto tombo…”, desabafa. Quando resgatada pela polícia, ela estava vivendo presa a uma cadeira de rodas, em um barraco da periferia.

Os prejuízos do álcool nunca intimidaram um outro senhor, de 70 anos, cuja denúncia de abandono também chegou à delegacia especializada do município goiano. As duas filhas cansaram do alcoolismo do pai e se mudaram para Minas Gerais. “Não devo nada a ninguém. Está bom do meu jeito, me deixem morrer aqui”, resmunga ele, que há mais de dois anos não corta as unhas. O pagamento do aluguel do quartinho colado a um posto de gasolina — repleto de lixo e fezes —, no valor de R$ 260 por mês, está, de fato, em dia. O restante da aposentadoria de um salário mínimo ele conta que gasta com o álcool. “Posso lhe pedir um favor? Me esqueça”, encerra a conversa.

Vulneráveis

Pesquisas norte-americanas publicadas na Revista de Psiquiatria Clínica, editada pela Universidade de São Paulo (USP), alertam para a prevalência de depressão em idosos, tornando-os vulneráveis à dependência do álcool e de jogos de azar. Pessoas envolvidas em jogatina teriam mais problemas de saúde, familiar, social, psiquiátrico e uma maior predisposição para o consumo abusivo de álcool. Outro estudo, divulgado em 2012 no Canadá, sugere que a prática de jogos de azar on-line guarda relação com o consumo de substâncias como o álcool.

Intervenção

A maioria dos aposentados brasileiros vive com um salário mínimo, hoje no valor de R$ 788. No caso de alcoólatras abandonados — que todos os meses despejavam o dinheiro em botecos —, o benefício muitas vezes acaba sendo surrupiado pela família. No abrigo de idosos visitado pelo Correio em Anápolis, a administração do local, após intervenção policial e judicial, assumiu o controle das finanças dos internos e utiliza os recursos para gastos como a compra de medicamentos.

Palavra de especialista

Carlos Salgado*

“O alcoolismo tem vida longa. Em geral, começa na adolescência e acompanha o indivíduo até o fim da vida. Nesses casos, a pessoa envelhece mais rápido, porque o uso crônico do álcool sobrecarrega o organismo, afeta a qualidade da memória e favorece danos mais graves. Dentro desse contexto, quem chega à vida adulta tem a capacidade de estudo prejudicada e certamente terá problemas para continuar desenvolvendo habilidades profissionais. Provavelmente, quem faz mal uso da bebida se aposenta precocemente. Não são raros casos em que, sem ocupação, o idoso passa a beber ainda mais, dificultando a situação. O alcoólatra tem uma biografia marcada por gastos médicos. Na terceira idade, também pesam muito as relações familiares, e quem bebeu a vida inteira tende a viver solitário, uma vez que desgastou todos os laços afetivos”.

(*) Médico integrante da comissão de dependência química da Associação Brasileira de Psiquiatria

ARTIGO

Danos são expressivos

Arthur Guerra de Andrade (*)

O uso de bebidas alcoólicas ocorre há milhares de anos, atrelado a relações de socialização. No Brasil, é um hábito bastante difundido. O álcool não costuma causar problemas para a maioria dos consumidores. Caracteriza-se como um bem de consumo significativo, com mercado crescente e produtores ocupando elevada posição econômica — movimentando bilhões e gerando muitos empregos. No entanto, uma minoria das pessoas desenvolve situações graves, cujos danos para a saúde individual, coletiva e econômica são expressivos.

A indústria de bebidas, visando preservar a imagem vinculada à responsabilidade social, precisa estar comprometida com esse tema. Embora o número de bebedores não tenha aumentado entre 2006 e 2012 no Brasil, a quantidade e frequência do consumo de álcool entre os que bebem cresceram. O brasileiro que consome álcool o tem feito em padrão potencialmente nocivo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a relação entre álcool e fatores econômicos é estreita e bilateral: o desenvolvimento de cada região influencia aspectos como nível de consumo, impacto do mercado informal, além de diferentes condições de saúde de forma geral. O uso nocivo da bebida representa extensa sobrecarga para a saúde financeira de sistemas públicos e privados.

Por exemplo, o Sistema Único de Saúde (SUS) acumula custos com doenças atribuídas ao uso nocivo do álcool. O sistema previdenciário gasta com benefícios a trabalhadores incapacitados por quadros de abuso ou dependência e seus familiares. Para a sociedade com um todo, existem consequências alarmantes, como mortes em acidentes, atividade sexual desprotegida e até não consensual.

Especificamente em ambientes de trabalho, dados nacionais divulgados em 2014 apontam que 7,4 milhões de trabalhadores admitiram já ter tido prejuízo no emprego e 4,6 milhões já perderam o sustento devido ao consumo de álcool. Para empreendedores, fica evidente o maior custo gerado com rotatividade de mão de obra, redução da produtividade e acidentes de trabalho.

O Brasil vem investindo no combate aos desfechos negativos ligados ao álcool e outras drogas. O governo federal separou R$ 4 bilhões para ações nesse sentido no ano passado. Políticas de regulação do álcool deverão passar por maiores restrições, alinhadas com a meta global lançada pela OMS, de reduzir o uso nocivo em 10% até 2025. Ações preventivas e para garantir acesso ao tratamento devem ter multidisciplinaridade e embasamento científico. O engajamento dos diversos setores envolvidos com a questão pode melhorar os índices de consequências negativas e posicionar melhor o Brasil.

(*) Psiquiatra e especialista em dependência química, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Faculdade de Medicina do ABC, além de presidente do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa).

Brasília, 15h56min

Vicente Nunes