26/11/2019 Crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF. Debate. Desafios para 2020 O Brasil que nos aguarda. Na Foto Felipe Salto, diretor - executivo da Instituição Fiscal Independente do Senado.

Felipe Salto: é possível ampliar o Bolsa Família sem mexer no teto de gastos

Publicado em Economia

ROSANA HESSEL

O especialista em contas públicas Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, considera uma “falácia” o argumento do governo de que, para criar um novo Bolsa Família de R$ 400 para os mais pobres, é preciso estourar o teto de gastos — emenda constitucional que limita o aumento das despesas pela inflação, a EC 95/2016. Para ele, é possível ampliar o benefício sem destruir as regras fiscais em vigor, que abre espaço para o cenário pessimista previsto pela IFI, sem crescimento da economia. Além disso, afirma que o governo errou no monitoramento dos precatórios — dívidas judiciais — que cresceram muito e fizeram o espaço que o governo tinha para gastar mais encolher.

 

“Trata-se de um truque para subir o teto e ampliar o espaço para gastos. Não estamos falando apenas de gastos sociais, que poderiam ser abarcados no teto sem cavalo de pau. É espaço para gastos pulverizados. Todos sabemos disso”, destaca Salto. Segundo ele, no ano que vem, “o corte de gastos discricionários e emendas parlamentares poderia financiar um incremento importante no Bolsa Família”. O economista sugere, por exemplo, que o programa poderia ser ampliado em R$ 14 bilhões, “com corte de despesas discricionárias e o espaço natural do teto no ano que vem”. Além disso, seria possível corrigir o erro de contabilidade dos precatórios do Fundef (fundo da educação dos anos 1990) e abrir espaço adicional de R$ 16 bilhões. “Mas o problema é que essa estratégia não permitiria qualquer espaço para emendas de relator-geral ao Orçamento. Aí é que está. A alteração foi motivada por outros fatores que não a questão social”, lamenta. 

 

No entender de Salto, o governo está indo pelo “pior caminho”, que é alterar o teto de gastos e isso deverá piorar o cenário econômico e travar o crescimento e elevar os juros e custo da dívida pública. “Não era inevitável. Isso é muito claro para quem faz contas”, frisa Salto, que é o primeiro diretor-executivo da instituição que é o “cão de guarda” das contas públicas e que foi crítico ao teto quando foi aprovado pelo Congresso. Recentemente, a IFI divulgou as novas projeções para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, que estão mais otimistas do que o Fundo Monetário Internacional (FMI), de 1,5% em 2022. Mas, segundo ele, o cenário pessimista, que prevê expansão do PIB de 0,1%, é o “mais provável” atualmente. 

 

O diretor-executivo da IFI também não poupa críticas à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que adia o pagamento de precatórios, a PEC 23/2021, que está sendo relatada pelo deputado federal Hugo Motta (Republicanos-PB). Pelas estimativas da IFI, o espaço fiscal que as mudanças na PEC proporcionam, inclusive, na metodologia de cálculo do limite do teto, abrem espaço de R$ 94,9 bilhões para o governo gastar mais. “A verdade é que o teto de gastos morreu e, agora, o desafio para 2023 será ainda maior. Reconstruir tudo do zero”, lamenta. “A PEC dos Precatórios, que agora abarcou também a mudança retroativa da correção do teto, no mesmo texto, é a pior medida de política econômica da história recente do país”, afirma. 

 

Ao reconhecer que o teto de gastos tinha problemas de desenho “desde o início”, Salto ressalta que a regra é importante para dar um direcionamento das expectativas do mercado e, sem essa âncora fiscal, “o mercado reage mal, aumentando os juros e o câmbio, porque percebe risco mais elevado”, comprometendo o crescimento econômico no ano que vem, e, portanto, precisa ser respeitado enquanto estiver em vigor, a fim de ancorar as expectativas. 

 

Veja a íntegra da entrevista concedida por Salto ao Blog e ao Correio Braziliense:

 

O senhor tem sido bastante crítico aos últimos movimentos do governo para criar o novo Bolsa Família, destruindo o teto de gastos, última âncora fiscal vigente. Por que essa regra é importante já que o senhor criticou o teto quando ele entrou em vigor?

 

A questão central não é mudar o teto. As instituições e regras de contas públicas passaram por mudanças importantes desde os anos 1980. Cito a extinção da Conta de Movimento entre o Banco do Brasil e o Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro Nacional para gerenciar a dívida pública de maneira autônoma e técnica, a Lei de Responsabilidade Fiscal, o fechamento e saneamento dos bancos estatais estaduais, a fixação das metas de resultado primário, dentre outras. Ocorre que regras fiscais, sozinhas, não fazem verão. É preciso compreender que uma regra, uma legislação só faz efeito quando há também o compromisso político e das elites dirigentes em relação à responsabilidade fiscal. O teto de gastos tinha problemas de desenho desde o início, mas isso não anula o efeito muito positivo que proporcionou do ponto de vista da fixação de uma restrição orçamentária efetiva e da redução do custo médio da dívida até há pouco tempo. Discutir o arcabouço fiscal, mesmo o teto de gastos, não é o problema. O que se está fazendo agora, no entanto, é uma mudança oportunística para abrir espaço orçamentário à realização de despesas em ano eleitoral. Pelas contas da IFI, serão R$ 94,9 bilhões, quando somados os efeitos do calote nos precatórios e do cálculo retroativo do indexador do teto. A verdade é que o teto de gastos morreu e, agora, o desafio para 2023 será ainda maior. Reconstruir tudo do zero.

 

Quais os problemas da regra do teto de gastos? Ela poderia ser melhorada já que há uma revisão prevista em 2026?

 

O teto de gastos traz a ideia fundamental de limitação do crescimento das despesas. O artigo 108 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), trazido já pela Emenda 95, em 2016, permite a troca do indexador, em 2026, seguida sempre da possibilidade de uma nova troca por mandato presidencial. Será uma boa oportunidade para se discutir a recalibragem da regra. No entanto, é possível que as manobras aprovadas agora, que eu chamo de pedaladas constitucionalizadas no teto de gastos, acabem por ensejar uma discussão antecipada já em 2023. O importante do arcabouço fiscal é que seja crível, tenha mecanismos de flexibilidade e válvulas de escape e esteja alinhado ao principal objetivo da política fiscal: a sustentabilidade da dívida pública. Agora, vamos ter claro: a mudança feita neste momento, às pressas, nada tem que ver com discussões técnicas de fundo. Trata-se de um truque para subir o teto e ampliar o espaço para gastos. Não estamos falando apenas de gastos sociais, que poderiam ser abarcados no teto sem cavalo de pau. É espaço para gastos pulverizados. Todos sabemos disso.

 

O mercado reagiu mal à nova investida do governo contra a regra do teto. Os críticos dizem que essa regra é draconiana e impede investimentos sociais. Isso é verdade?

 

Não. O teto impõe escolhas. Pode-se imaginar que precise ser alterado, a médio prazo, mas não foi o teto que impediu o aumento do Bolsa Família para 2022, tampouco os gastos emergenciais em 2020 e 2021. Ao contrário, a válvula de escape do crédito extraordinário permitiu um gasto de R$ 524 bilhões, no ano passado, e permitirá outro de cerca de R$ 134 bilhões, em 2021. No ano que vem, o corte de gastos discricionários e emendas parlamentares poderia financiar um incremento importante no Bolsa Família. A IFI mostrou isso em mais de uma ocasião nos seus Relatórios de Acompanhamento Fiscal (RAF). A sanha para gastar com outras coisas foi maior, no entanto, e agora estamos desancorados. O teto não é a última maravilha do mundo, mas a regra tem de ser respeitada, sobretudo quando está na iminência de ser rompida. Agora, que ela exerceria o seu maior efeito, muda-se ao bel prazer para financiar expansão em ano eleitoral. É disso que estamos falando. O mercado reage mal, aumentando os juros e o câmbio, porque percebe risco mais elevado. Isso afetará a dívida pública e, vale dizer, os gastos com juros já estão aumentando fortemente, e também derrubará o crescimento econômico no ano que vem. 

 

Quais os impactos na economia se o teto de gastos deixar de existir? E qual seriam as perdas para o consumidor brasileiro?

 

O teto exerce hoje a função de ancoragem das expectativas. Com a manobra da PEC 23, ele deixa de existir, perde suas funções, como aconteceu com a meta de resultado primário no governo Dilma. É o mesmo filme e o final é conhecido. O efeito será o aumento dos juros e a queda do crescimento econômico. Quem pagará a conta serão os brasileiros e brasileiras mais pobres. Os gastos sociais que estão sendo prometidos amenizarão esses efeitos, mas temos pela frente um ano muito ruim. O populismo vai ganhando corpo. Do ponto de vista IFI, vamos continuar com o trabalho de alerta a respeito desses riscos e mostrando os custos derivados de um cenário mais pessimista. É nosso dever acompanhar as metas fiscais. Está na lei. E, infelizmente, acertamos o cenário. Há anos temos alertado para os problemas e riscos associados ao teto de gastos, sobretudo quando olhamos os gastos discricionários e os investimentos. A toada de desmonte do arcabouço fiscal ganha força com a PEC. Não é à toa a saída de membros da equipe técnica do Ministério da Economia. E com razão.

 

O que o senhor acha do argumento do governo usar o novo Bolsa Família ou Auxílio Brasil para justificar o descumprimento da regra do teto de gastos? É possível ampliar o benefício sem estourar o teto?

 

É uma falácia. O Bolsa Família poderia ser ampliado em R$ 14 bilhões, com corte de despesas discricionárias e o espaço natural do teto no ano que vem (pois há despesas crescendo abaixo da inflação). Além disso, seria possível corrigir o erro de contabilidade dos precatórios do Fundef (fundo da educação dos anos 1990) e abrir espaço adicional de R$ 16 bilhões. Mas o problema é que essa estratégia não permitiria qualquer espaço para emendas de relator-geral ao Orçamento. Aí é que está. A alteração foi motivada por outros fatores que não a questão social. Esta poderia ser resolvida com uma gestão adequada, dentro das regras do jogo, sem abandonar o teto de gastos e sem dar calote nos precatórios. A opção foi feita, registre-se, pelo pior caminho. Não era inevitável. Isso é muito claro para quem faz contas.

 

Alguns analistas defendem uma maior auditoria da dívida pública e redução do volume das reservas internacionais para criar espaço fiscal para o Bolsa Família. O que o senhor acha desse tipo de alternativa?

 

Isso é um disparate neste momento. As reservas internacionais e a situação do balanço de pagamentos são as duas coisas boas que ainda temos. Torrá-las em momento de crise seria um golpe de misericórdia na estabilidade mínima que ainda se tem. A venda de reservas poderia ser discutida, dentro de um programa coeso e numa conjuntura normal, com critério e de modo paulatino, para que a dívida do Banco Central — as chamadas operações compromissadas — pudessem diminuir de tamanho. Este tema tem de ficar bem longe, agora, ou vamos piorar o que já está muito ruim. 

 

O senhor também critica a PEC dos Precatórios, que o governo vai tentar aprovar esta semana no plenário da Câmara. A versão do relator ainda ficou pior do que a do Executivo. Quais os riscos dessa proposta?

 

Como comentei, a PEC dos Precatórios, que agora abarcou também a mudança retroativa da correção do teto, no mesmo texto, é a pior medida de política econômica da história recente do país. A limitação do pagamento de uma despesa obrigatória, ainda que via cap sobre a expedição, pela Justiça, é um sinal de que despesas podem simplesmente não ser pagas, postergadas, adiadas. Alguém poderia perguntar: se o precatório pode ser adiado, por que não fazer o mesmo com o décimo terceiro dos pensionistas? É uma loucura e isso já é precificado pelo mercado, junto com o abandono do teto de gastos. Para ter claro, dos R$ 89,1 bilhões em precatórios e sentenças judiciais, R$ 47,4 serão pagos só Deus sabe quando. A regra de limitar ao valor de 2016 corrigido pela indexação do teto resulta nisso. Somado ao rombo aberto no teto de gastos, estamos falando de R$ 94,9 bilhões de reais. O risco adicional é que esses gastos não vão se desmanchar no ar após 2022. Veem para ficar, piorando o déficit e a dívida permanentemente.  

 

Pelas estimativas iniciais da IFI, as mudanças da PEC dos precatórios deverá abrir um espaço fiscal de R$ 94,4 bilhões, acima do valor necessário para a ampliação do Bolsa Família, em torno de R$ 47 bilhões. Isso é a prova de que a medida é meramente eleitoreira?

 

Fizemos um refinamento do cálculo e serão R$ 94,9 bilhões. R$ 47,5 bilhões virão da mudança retroativa da correção do teto de gastos e outros R$ 47,4 bilhões do calote nos precatórios. Esse volume de gastos será direcionado apenas parcialmente ao reajuste do Bolsa Família, na verdade, ao financiamento do seu substituto com valor mais elevado, o Auxílio Brasil, e ao auxílio temporário prometido para o ano eleitoral. O restante, pergunto, será destinado ao quê? Esta pergunta é o que enseja a preocupação a respeito do tipo de despesa que vamos realizar, quando não há espaço para isso, a dívida está muito acima da média dos países emergentes e o crescimento econômico é pífio. Abre-se uma folga para gastar e para gastar mal. Este é o ponto. As despesas que podem aumentar, em tão pouco tempo, são gastos no varejo, a exemplo de praças, pequenas obras, compras de equipamentos. É muito preocupante o orçamento ter se transformado numa verdadeira feira livre. Não há planejamento e o país paga caro por isso.

 

O governo negligenciou o monitoramento dos precatórios? Que saída o governo deveria ter buscado para esse problema a fim de evitar a deterioração das contas públicas e da confiança dos investidores?

 

Sim. A AGU informa ao governo os riscos de cada precatório, bem antes de estourarem. Tanto é assim que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Balanço Geral da União trazem informações sobre esses passivos contingentes. O problema é que são informações agregadas, que não permitem o adequado escrutínio. O governo deveria ter negociado os precatórios antes de explodirem. Não fez isso e agora alega ignorância. Não há como comprar essa tese. É furada. 

 

Recentemente, a IFI revisou as previsões macroeconômicas do Brasil, mas está mais otimista do que o FMI, que prevê crescimento de 1,5% no PIB de 2022, e alguns analistas não descartam queda do PIB no ano que vem e falam em um cenário de estagflação. Por que a economia brasileira está se deteriorando tão rápido?

 

A IFI tem sempre três cenários. No pessimista, poderemos crescer apenas 0,1%, incorporando o risco de um racionamento de energia. No cenário base, mantemos 1,7%, mas estamos cada vez mais vislumbrando o aumento da probabilidade do cenário pessimista. As medidas na área fiscal elevarão fortemente os juros, o que derrubará o investimento, o consumo e o crédito. Não tem como crescer nesse cenário permeado por incerteza e risco. É um quadro muito preocupante, que dificilmente será revertido a médio prazo. O desafio da reconstrução, a partir de 2023, será enorme.

 

No fim de semana, o ministro Paulo Guedes saiu atirando em vários economistas renomados, inclusive, o ex-presidente do BC, Affonso Celso Pastore, como fez com o senhor, que saiu em defesa deles. A que se deve tanta agressividade do ministro?

 

Sinceramente, não sei. É uma pena que o ministro Paulo Guedes não tenha reconhecido o papel importante da IFI. Pessoas passam e instituições ficam. Vamos completar cinco anos de funcionamento em novembro, com reconhecimento dos economistas do mercado, dos parlamentares, dos técnicos do Poder Executivo, da imprensa e dos organismos multilaterais. Os dois ataques sofridos pela IFI foram respondidos, principalmente, por esses grupos, que enxergam na instituição uma inovação fundamental para a preservação do equilíbrio fiscal e para o zelo permanente em relação à disciplina fiscal. O ataque a Affonso Celso Pastore, o maior economista do Brasil, a meu ver, segue a mesma linha de tentar desqualificar os críticos, aqueles que estão apontando o dedo, há muito tempo, para os riscos, e que agora mostram os resultados da sua materialização, com o fim do teto de gastos. O mesmo fez com os ex-ministros Mailson da Nóbrega e Henrique Meirelles, que têm uma folha extensa de serviços prestados à nação.