Há anos temos assistido à deterioração do sistema de segurança do país, totalmente dominado pela corrupção. Nossos olhos estão voltados agora para o Rio, diante do choque provocado pelo assassinato de Marielle e de Anderson, mas a violência está disseminada. O Estado paralelo, mais bem organizado, conseguiu ocupar todos os espaços e não se intimida em passar por cima de quem ofereça a menor possibilidade de ameaça. Fomos lenientes, acreditando que, um dia, as coisas melhorariam.
As mortes da vereadora e do motorista dela são uma afronta. Indicam que perdemos o direito de nos posicionar livremente, de expressarmos nossas indignações, de gritar contra tudo o que está errado. Marielle havia levantado a voz para denunciar a truculência da polícia carioca. Cobrava mais espaço para as mulheres na política e no mercado de trabalho. Pregava a igualdade racial. Exigia um Brasil livre de preconceitos. Ela simboliza um sopro de renovação na política, em especial no Rio de Janeiro, em que os três últimos governadores foram presos por corrupção.
Chega de impunidade
Marielle era a cara do Brasil oprimido — do qual, se registre, ela conseguiu se desvencilhar. Mulher, gay, negra e favelada, libertou-se de um destino quase certo, o da pobreza, por meio da educação. Mesmo depois de uma gravidez precoce, formou-se, com uma bolsa de estudo, em sociologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-RJ), território dominado pela burguesia. Foi além: tornou-se mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Logo no primeiro teste nas urnas, em 2016, elegeu-se vereadora com 46 mil votos, a quinta mais votada do Rio.
Temos que fazer da indignação geral com as execuções de Marielle e de Anderson uma bandeira para obrigar o governo a agir. Somente a intervenção federal no Rio não será suficiente para recuperar o direito à vida. As declarações das autoridades diante do assassinato da vereadora e do motorista dela não foram suficientes para nos convencer da real disposição em combater a violência extrema. Muito pelo contrário. Deixaram a sensação de que todos quiseram tirar proveito político da dor da perda de mais duas vidas.
Não se quer apenas que os assassinos de Marielle e de Anderson sejam encontrados. Exige-se que todos os crimes sejam esclarecidos. É inacreditável que apenas um em cada 10 assassinatos no Rio seja esclarecido. Essa estatística se repete em quase todo o Brasil. Pior: muitos dos crimes são cometidos por aqueles que deveriam nos proteger, os policiais. Nos casos da vereadora e do motorista dela, são fortes as suspeitas de que os executores sejam integrantes da polícia, milicianos que se sentiram intimidados pelas denúncias de Marielle e pela intervenção militar.
É preciso ressaltar ainda que a morte da jovem e promissora Marielle, de 38 anos, foi um atentado à democracia. Estamos falando de uma parlamentar assassinada em pleno exercício do mandato. Tomara que a voz da vereadora não se cale. Ela tem que se multiplicar por milhões de vozes cobrando um país mais justo, no qual todos possam exercer o livre direito de ir e vir e de expressar suas ideias sem medo, com respeito.
As manifestações populares no país e em várias partes do mundo cobrando uma ação contundente das autoridades nos dão um sopro de esperança. Temos que dar um basta à criminalidade, ao PPC, ao Comando Vermelho, aos policiais e aos políticos corruptos. Ninguém tem o direito de nos silenciar. As mortes de Marielle e de Anderson exigem exatamente o contrário, que saiamos gritando em favor da vida e por Justiça. Chega de impunidade.
Brasília, 06h16min