Coluna no Correio: República das corporações

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A batalha feroz travada entre servidores públicos e o governo por causa de aumentos de salários é o mais claro sinal dos problemas que o Palácio do Planalto terá para aprovar, no Congresso, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento de gastos à inflação do ano anterior. Assim como o funcionalismo não abre mão de inflar os contracheques, mesmo com o país mergulhado na mais grave crise econômica em quase um século, os congressistas vão impor todas as dificuldades para manter os privilégios a fim de manipular receitas e despesas de acordo com seus interesses.

Esses dois grupos, por sinal, deram as mãos no Congresso. E não vão sossegar até que os projetos que garantem os reajustes sejam aprovados. A disposição para sancionar o aumento das despesas com servidores é visível, inclusive, na base aliada do governo. Apesar do apelo do presidente interino, Michel Temer, para que os reajustes sejam suspensos até que a PEC dos gastos entre em vigor, integrantes da base aliada trabalham pesadamente para que as correções salariais de 10 categorias saiam do papel. A alegação é de que os custos extras já estão previstos no Orçamento.

A falta de compreensão do funcionalismo em relação ao momento que o país vive é tamanha que carreiras contempladas com aumento de 27,9% decidiram fazer greve para incorporar benefícios que foram oferecidos a outras categorias, mas que sequer receberam o aval do Congresso. É o que se vê no Tesouro Nacional. Os servidores desse órgão estão em greve cobrando um bônus de eficiência que foi prometido aos auditores da Receita Federal, cujo projeto está em tramitação no Legislativo. Ou seja, exigem uma coisa que ainda não existe.

O mesmo comportamento se observa na Polícia Civil do Distrito Federal, que pleiteia isonomia com os policiais federais. O projeto de lei que corrige os salários da Polícia Federal está entre aqueles que o Palácio do Planalto pediu para o Congresso segurar. Esse tipo de cobrança revela o quanto o funcionalismo é voraz quando se trata de salário. Isso, apesar de todas as pesquisas mostrarem que, na média, os servidores ganham pelo menos o triplo dos demais trabalhadores.

Festival de benesses

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que poderá ter o salário elevado de R$ 33 mil para R$ 39 mil se o Senado avalizar o projeto de lei que está em tramitação, define bem o espírito que prevalece no serviço público. “Eu tenho a impressão de que o país virou uma república corporativa, em que cada qual, aproveitando-se da autonomia administrativa e financeira, faz seu pequeno assalto”, diz. No caso, ele se refere aos salários de juízes de primeira e segunda instâncias que ultrapassam o teto constitucional de R$ 33 mil.

Esses magistrados têm feito marcação cerrada no Congresso. Se o aumento da remuneração dos ministros do Supremo, de R$ 33 mil para R$ 39 mil, passar, todos serão beneficiados por meio de um efeito cascata. O reajuste valerá, inclusive, para os penduricalhos que os juízes recebem, como o auxílio-moradia, que não entram no cálculo do teto. Essa contabilidade diferenciada foi autorizada em 2014 pelo ministro Luiz Fux, da mais alta Corte do país. “Nós contribuímos para essa confusão com o auxílio-moradia por meio de uma liminar, que foi generalizada por uma decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, afirma Mendes.

A farra está tão disseminada, no entender do ministro, que, recentemente, o STF teve que decidir sobre uma ação movida por um procurador da República. Ele alegou que não estava tendo direito à primeira classe em avião, o que não era compatível com a sua função. “Ou seja, virou um festival de abusos. O país se transformou em uma república de corporações. Isso é péssimo. A autonomia administrativa e financeira (dos poderes), que deveria fortalecer a independência, tornou-se outra coisa. Virou um festival”, frisa.

Buraco sem fundo

Na avaliação de Pedro Paulo Silveira, economista-chefe da Nova Futura Corretora, as cobranças do funcionalismo só contribuem para alimentar a desconfiança dos investidores em relação ao ajuste fiscal. Para ele, o governo tem parte de culpa nisso, uma vez que, ao tomar posse, garantiu reajustes de salários para uma parcela importante de servidores. Com isso, abriu a porteira para que todos se sentissem no direito de ter os mesmos benefícios.

“O ideal seria que não houvesse aumento para ninguém”, afirma Silveira. Por uma razão simples. O Brasil enfrenta uma crise fiscal sem precedentes. As contas públicas estão no vermelho desde 2014, com deficits crescentes. Na melhor das hipóteses, só voltarão ao azul em 2019. “Aumento de salários de servidores neste momento emite sinais ruins. Cria ruídos desnecessários num momento em que o governo precisa consolidar a confiança de que o ajuste fiscal é para valer”, acrescenta.

Silveira destaca ainda que o governo não pode ceder. A arrumação das contas públicas é fundamental para que o país reencontre o caminho do crescimento. A população, que sofre com o desemprego por não ter estabilidade no trabalho, não aguenta mais um ano de recessão, muito menos pagar mais impostos para sustentar privilégios.

Entre 2015 e 2016, o Produto Interno Bruto (PIB) vai recuar quase 8%. Famílias que ascenderam socialmente voltaram à pobreza. Não é justo que pequenos grupos continuem tendo tantos privilégios bancados pela grande maioria. Bom senso é bom e todo mundo gosta.

Brasília, 00h54min

Vicente Nunes