Coluna no Correio: Passagem para o desastre

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O governo já identificou estrago na imagem da equipe econômica. As incoerências na condução da política fiscal levaram muitos investidores e analistas de peso a questionarem se realmente o grupo chefiado pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, está disposto a arrumar as contas públicas. Não foi por acaso, portanto, que o presidente interino, Michel Temer, usou parte de seu discurso, ontem, em uma feira agrícola para avisar que, depois do impeachment, tudo será diferente. Para compensar as bondades anunciadas nos últimos dias, que custarão quase R$ 130 bilhões ao Tesouro Nacional, o Palácio do Planalto promete aumentar impostos e cortar benefícios, sobretudo da Previdência Social.

Pouca gente acredita, porém, que Temer terá coragem para contrariar interesses arraigados. Desde que ele chegou ao Palácio do Planalto, após o afastamento de Dilma Rousseff, não conseguiu levar adiante temas polêmicos. Logo na primeira semana de governo, a equipe econômica preparou uma série de medidas visando um ajuste fiscal mais rápido e consistente, mas a maior parte do pacote foi para o lixo, sob a justificativa de que o momento político não comportava tanta maldade. A partir daí, o que se viu foi uma série de aumentos de despesas contrariando todo o discurso de arrocho propagado por Meirelles e comprado, com vontade, pelos investidores.

O Palácio do Planalto patrocinou o aumento de salários dos servidores, fatura que chegará a R$ 67 bilhões até 2018. Abriu mão de R$ 50 bilhões referentes a dívidas de estados. Reajustou o Bolsa Família (o menor dos gastos e o único aumento justificável), liberou emendas de parlamentares e ampliou o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) — a lista é muito mais extensa. Tudo embalado pelo discurso de que o governo só estava cumprindo o que foi acertado pela administração anterior, mas que precisava ser incorporado à previsão de rombo fiscal, elevada para R$ 170,5 bilhões. Ou seja, Temer estava aumentando os gastos, mas a culpa era exclusivamente de Dilma. A ela deveriam ser direcionadas as críticas.

Roupa velha

A falta de originalidade no discurso do governo Temer não tem limite. Para mostrar que, a partir de 2017, tudo será diferente, a equipe econômica, apontada por muitos como brilhante, passou a difundir que o rombo nas contas será menor. No ano que vem, parte do buraco será coberto por receitas de vendas de ativos, totalizando até R$ 30 bilhões. Mas o grupo chefiado por Meirelles sequer se deu ao trabalho de apresentar um pacote novo. Optou pelo caminho mais fácil, ao usar, como alvos de privatização, a Caixa Seguridades, o Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) e as participações que a Infraero tem em aeroportos privados, além de concessões de rodovias e terminais aéreos. É o mesmo programa citado por Joaquim Levy e Nelson Barbosa, ex-ministros da Fazenda de Dilma.

O governo está tão perdido em relação ao ajuste fiscal que, a poucos dias de encaminhar ao Congresso a meta fiscal de 2017, não tem a menor noção do tamanho do rombo, estimado pela equipe de Dilma em R$ 65 bilhões. A cada declaração de alguém da equipe econômica, a previsão aumenta. Começou em R$ 100 bilhões, passou para cerca de R$ 130 bilhões, cogitou-se R$ 150 bilhões e até se repetir os R$ 170,5 bilhões de 2016. Essa falta de parâmetro só confirma a disposição da atual administração de acomodar despesas, um sinal de que a licença para gastar continua valendo.

Para Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor do Banco Central, a decepção é geral. “Ninguém esperava esse tipo de comportamento do atual governo, até porque, neste momento, aumento de gastos não faz o menor sentido econômico”, diz. No entender dele, é perigosa a complacência de parte dos agentes econômicos, que aponta como justificativa para a gastança a necessidade de Temer de fortalecer sua base no Senado e aprovar o impeachment definitivo de Dilma. “Não é necessário fazer coisas erradas para obter força política”, afirma. “Tenho tantas dúvidas diante do que estou vendo que não me surpreenderei se o rombo nas contas deste ano for maior do que os R$ 170,5 bilhões anunciados por Meirelles”, emenda.

Sobrevivência

Menos crítico, o professor Renato Fragelli, da Fundação Getulio Vargas (FGV), assinala que as ações de Temer nos últimos dois meses tiveram como objetivo a sobrevivência política. Para ele, não havia como o peemedebista comprar briga com servidores, barrando um reajuste que havia sido sacramentado no governo anterior, nem fechar as portas para a renegociação das dívidas de estados, muitos deles quebrados por causa dos incentivos dados por Dilma a alguns setores por meio da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI).

Na avaliação de Fragelli, as medidas tão criticadas foram tomadas por um governo provisório. O importante, acrescenta, é não levar adiante o descontrole estrutural das contas públicas. “E isso não será feito, uma vez que Meirelles está propondo, por meio de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), um teto para o aumento dos gastos. Essa PEC nos tirará da ilusão orçamentária que sempre prevaleceu no país”, frisa. Ele diz ainda acreditar que o ministro da Fazenda não manchará sua vida pública ao patrocinar a mesma farra fiscal que levou o Brasil para o buraco e está custando caro para empresas e trabalhadores.

Apesar das ressalvas de Fragelli, a desconfiança é grande, inclusive no entorno de Temer. Gente graúda e de boa fé que transita pela Esplanada dos Ministérios vê sinais de racha dentro do governo, com parte da ala política tentando fritar Meirelles, repetindo o modelo usado por petistas para destruir Joaquim Levy. Uma dessas raposas desabafa: “Se Temer deixar o fogo amigo avançar sobre o ministro da Fazenda, será seu suicídio político. A única forma de ele se manter no poder e fazer uma travessia tranquila até 2018 é justamente recuperando a economia. E isso passa por entregar um ajuste fiscal consistente”.

Como se vê, a preocupações com as incoerências do governo não estão somente no mercado. Já ganharam corpo dentro do governo. Ou Temer acordo rápido, ou vai afundar — e rápido. A área política do Planalto não tem o que perder. O risco de ela ser atropelada pela Lava-Jato é grande.

Brasília, 05h30min

Vicente Nunes