São tantas, tão profundas, tão antigas, que falar de crise a toda hora disseminou o sentimento de impotência, criando até a suspeita de que parte delas seja distração, inventada para desviar a atenção das verdadeiras soluções. A impressão é que tanto os governantes como os que se lhe opõem a cada ciclo eleitoral desde a Constituição de 1988, que moldou a “cara” atual do país, não fazem a menor ideia sobre o que vem a ser o processo de enriquecimento de uma nação.
Gastou-se mais tempo na formulação de programas dispendiosos para minorar o sofrimento dos mais pobres, por exemplo, que em políticas que promovessem a educação e a capacitação profissional em consonância com as necessidades do investimento produtivo e das inovações tecnológicas para além da agricultura, da mineração e do petróleo — dádivas da natureza, que mais serviram para a lassidão dos síndicos do poder que para bancar as transformações.
Escrevo com os verbos no passado (gastou, serviram) porque é aí em que nos encontramos enquanto nação, com o Tesouro endividado e o Estado esgotado pelos compromissos pactuados pela Constituição.
“Governo se equivoca ao buscar um ajuste fiscal à base do tudo ou nada sem cuidar do crescimento”
É essa a razão de o governo atual levar ao Congresso a proposta de reforma da previdência, o maior dos passivos constitucionais, como fizeram todos os presidentes depois de 1994. A contragosto, diga-se, tal como Jair Bolsonaro, ao qual não restou o espaço de manobra que ainda havia para FHC, Lula e Dilma. Temer chegou sem espaço algum.
Os economistas do pensamento dominante projetam o abismo adiante, imagem a que o ministro da Economia, Paulo Guedes, apela ao expor a urgência das reformas fiscais. Não lhes ocorre, até porque os ditos liberais raramente põem gente em seus cálculos, contar o tamanho da penúria. É grande o bastante para não poder ser cortada de vez.
Cacoete dos ortodoxos
Assim como não se recomenda a abstinência absoluta aos dependentes químicos sob pena de graves sequelas, até morrer, o desmonte de um modelo de setor público despreocupado com o crescimento econômico e voltado a distribuir o que nem foi produzido terá de ser gradual para não gerar paralisia generalizada. Este já é o cenário atual.
O governo se equivoca ao buscar um duro ajuste fiscal à base do tudo ou nada sem crescimento. É um cacoete de ortodoxos e liberais. Com alta ociosidade da produção, renda real deprimida, investimento no menor nível vis-à-vis o PIB desde 1994 e desemprego e subemprego de 25% da força de trabalho, a demanda desabou, arrastando a receita tributária, mas não o gasto público, 95% do qual é mandatório.
O deficit fiscal federal sentou praça desde 2014 e assim deverá ir em frente, enquanto os governos regionais, que não emitem moeda nem podem endividar-se a gosto, entram em colapso. Já é insustentável.
Estado provê 48% da renda
Ainda que afronte os cânones liberais e apesar do histórico ruim das políticas econômicas ativistas, o governo precisará rever as suas concepções ou a recessão baterá à porta de um presidente sem jeito para construir consensos, sem plano e com a popularidade em baixa.
O que há que considerar? Primeiro, que o Estado sustenta 93 milhões de pessoas com bolsa social, salário (servidores civis e militares) e aposentadoria nos três níveis da federação. Como já dissemos, isto significa que 54% da população em idade ativa dependem do Estado brasileiro.
Em dinheiro, equivale a 48% da renda total das famílias brasileiras (25,5% de salários de funcionários, 19,2% de benefícios sociais e 3% de salários de empresas e bancos estatais). Esse quadro é impossível de ser sustentado pela sociedade em geral e a economia privada.
Apenas choques negativos
Para começar, configura suicídio espremer o parafiscal, como se vê pela evolução do crédito corporativo em relação do PIB. Era de 32% em 2014 e de 25,4% no fim de 2018. Encolheu 6,5 pontos de percentagem do PIB, cerca de R$ 470 bilhões a menos para movimentar a economia.
O imobilismo, por si contracionista, alarga o quadro de ociosidade, abatendo, segundo o economista Bráulio Borges, pesquisador do IBRE-FGV, 2 pontos do PIB da receita federal, ou R$ 145 bilhões, muito mais que a previsão de déficit primário de 2019. No BNDES, propulsor do crédito ao investimento, a queda real acumulada desde 2015 chega a 40%, conforme Gilberto Borça Jr, economista do banco.
Tudo isso são choques negativos de demanda, que deprimem os negócios, alquebram o PIB, aprofundam o desemprego etc. O que fazer? Acelerar as reformas, sim. Mas cuidar também do dia a dia, já que a economia é feita de pessoas, não de estatísticas e ideologias.
Pondo sapo em água morna
O maior obstáculo hoje não é a falta de ideias para o país crescer. É a falta de estratégia e de governança para apoiar a passagem para outro modelo de desenvolvimento. Ela implica urgência nas reformas de cunho fiscal, como a da previdência. Isso é inescapável.
Mas, tal como na reforma da casa, não se joga fora a mobília velha antes de a obra estar acabada. É o que estamos fazendo, tanto com a paralisia do crédito como do gasto público num país viciado, como vimos, em bolsa disso e daquilo, subsídio, burocracia egoísta, meia entrada etc. Só se consegue rever mazelas de modo abrupto se o Estado falir. Sem isso, faz-se aos poucos, como cozinhar sapo em água morna.
Ah! Também precisamos repensar as concepções da economia, visando o caminho em curso na maioria dos países – a transformação direta, não em etapas, para a economia digital. Nela estão o futuro e o meio de pôr ordem na bagunça do setor público e dos poderes independentes. Felizmente, líderes do Congresso tão subestimado têm essa visão.