Nova York – O Brasil deu passos importantes para reduzir os acidentes de trânsito, mas não cumprirá as metas fixadas junto à Organização das Nações Unidas (ONU) de reduzir dos desastres pela metade até 2020. Em 2011, quando passou a vigorar o acordo, morriam nas rodovias brasileiras, em média, 24 pessoas por 100 mil habitantes. Agora, são 18 por 100 mil. As estatísticas mostram que entre 40 mil e 50 mil brasileiros ainda perdem a vida nas estradas todos os anos. Trata-se de uma epidemia que mata mais do que em guerras como a da Síria. Diante do fracasso do Brasil e de boa parte dos países que se comprometeram com a ONU em atacar essa praga, a meta de redução das mortes no trânsito foi esticada para 2030. Mas será preciso um grande engajamento de Estado e sociedade para evitar nova frustração.
Duas políticas adotadas pelo Brasil são apontadas como primordiais para evitar um quadro ainda mais assustador nas ruas e nas estradas brasileiras. A primeira, a Lei Seca (11.705), que completará 10 anos em junho próximo. Pelos cálculos do deputado Hugo Leal (PSD-RJ), autor da lei, pelo menos 41 mil vidas foram salvas desde que o país passou a combater o consumo de álcool por quem está ao volante. A segunda, a entrada em vigor, em 2015, da Lei 13.103, que passou a exigir exame toxicológico para motoristas profissionais, com carteiras C, D e E. Em dois anos de vigência dessa lei, cerca de 1,2 milhão de motoristas foram retirados das rodovias porque não conseguiram passar nos testes ou se recusaram a fazê-los, destacou Marcio Liberbaum, presidente do Instituto de Tecnologias para o Trânsito Seguro (ITTS).
A situação do trânsito no Brasil foi apresentada nesta sexta-feira (27/04) no seminário O uso de tecnologia para promover estradas seguras, as experiências brasileiras, na sede da ONU, em Nova York. Na avaliação de Fernando Diniz, presidente da ONG Trânsito Amigo, houve avanços, mas é preciso muito mais. “Estamos em guerra. Enquanto não houver a obrigatoriedade de exames toxicológicos para todos os motoristas e motociclistas, vamos continuar destruindo famílias”, afirmou. Ele perdeu um filho, Fabrício, em um acidente de carro. O jovem de apenas 21 anos e mais duas amigas, que também morreram, pegaram carona com um motorista bêbado. “Vejo as nossas autoridades dizerem que são contra guerras em outros países, mas não são contra a nossa guerra no trânsito. Tenho vergonha do meu país”, afirmou.
Jornadas extenuantes
Os maiores responsáveis pelas mortes das estradas são caminhoneiros que recorrem ao uso de drogas para cumprirem jornadas extenuantes. Pelos cálculos do diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Renato Dias, 48% das mortes registradas em rodovias do país em 2017 foram provocadas por veículos pesados. Procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT), Paulo Douglas afirmou que a principal droga consumida por caminhoneiros é a cocaína. Para ele, esse quadro só vai mudar quando houver ajustes na legislação. Ao mesmo tempo em que trouxe avanços, como a exigência do exame toxicológico, a Lei 13.103/2015 abriu brechas para a exploração de motoristas profissionais ao liberar as jornadas de trabalho.
Segundo Rodolfo Rizzoto, coordenador do site SOS estradas, a maior parte dos caminhoneiros passa mais de 200 dias nas estradas, cumprem jornadas semanais de mais de 80 horas. Não bastasse o excesso de trabalho, vários desses profissionais são assediados e aliciados por traficantes. Passam a consumir entorpecentes e a transportá-los ilegalmente. Por isso, matam tanto nas rodovias. “Temos que tirar das mãos desses condutores a licença para matar”, defendeu. Para Maurício José Alves Pereira, diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), “é inadmissível que o Brasil continue registrando mais de 40 mil mortes por ano no trânsito”, boa parte delas, por uso de drogas e álcool.
Na opinião do desembargador Henrique Calandra, o Judiciário deve ser mais ativo para punir aqueles que matam no trânsito e tem que firmar entendimento não só para quem dirige veículos pesados, mas para todos os motoristas. “Os exames toxicológicos tem que ser estendidos a todos os condutores”, frisou. Segundo Marcos Vinícius Furtado Coelho, presidente do Conselho Nacional de Estudos Constitucionais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o direto precisa responder às demandas da sociedade, que pede mais segurança nas vias públicas. Ele não vê conflitos no debate entre a liberação para o consumo de certas drogas e punições mais severas para quem matar ao volante.
A mesma avaliação é feita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Segundo ele, é preciso políticas eficientes por meio da educação para desestimular o consumo de drogas, além do uso de tecnologias que impeçam danos a terceiros. Ele disse que a ONU vai ampliar o debate sobre a descriminalização do uso de entorpecentes, mas não acredita que os futuros candidatos à Presidência da República terão coragem de levar esse tema para os debates durante as eleições. Vice-presidente sênior da Quest Diagnostics, Cathy Doherty destacou que, há 30 anos, os Estados Unidos adotaram os exames toxicológicos para motoristas. Foi a forma que o país encontrou para evitar que tantas famílias fossem devastadas pela perda de entes queridos em mortes nas estradas. “O nosso foco é preservas vidas”, disse.
(*) O repórter viajou a convite do ITTS.
Nova York, 06h36min