Até onde vai o poder da Camex no comércio internacional

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O início do ano de 2019 trouxe muitas mudanças na política estratégica e na tomada de decisão no comércio internacional brasileiro. O primeiro sinal veio com a criação do Ministério da Economia, que agregou as atribuições do antigo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (Mdic).

Neste cenário, houve a primeira grande alteração de competência. O esvaziamento das atribuições da Câmara de Comércio Exterior (Camex), com a tomada de decisões de temas importantes para o comercial internacional delegada à Secretaria Especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais (Secint).

O discurso oficial sustentava que a Camex era um órgão obsoleto e travava a tomada de decisões, provocando descompasso na demanda por respostas ágeis inerentes ao dinamismo do comércio internacional.

Ou seja, enquanto a Secint ficaria encarregada de dinamizar o comércio a partir de decisões mais ágeis de questões corriqueiras — alteração de imposto e medidas de defesa comercial, por exemplo —, à Camex restaria a função de estabelecer diretrizes para a política macro do comércio internacional, ainda que tal função ficasse pendente de uma regulamentação, o que seria feito ao longo do ano.

Fragilidade

Na prática, no primeiro semestre, a Camex não funcionou como “Câmara”. Por não haver a norma que a regulamentasse, não se sabia quais eram exatamente suas competências nem seus membros  — a Camex sempre foi um órgão colegiado composto por ministros de Estado. Enquanto isso, as decisões de dia-a-dia foram sendo tomadas pelo secretário da Secint.

Porém, o que antes eram decisões de ministros, passou a ser a decisão de um secretário especial, que, mesmo empoderado, não é do primeiro escalão e não tem o peso de uma deliberação colegiada. Não demorou para a fragilidade ser notada e aparecerem os primeiros percalços políticos, similares a “jabs” em uma luta de boxe.

O primeiro deles foi a não renovação do direito antidumping contra as importações brasileiras de leite em pó originárias da União Europeia e da Nova Zelândia. Ainda que o processo tenha seguido seu curso normal e conduzido no governo anterior, foi a atual administração quem sofreu o impacto de decisão tomada pelo secretário de Comércio Exterior, Lucas Ferraz.

O setor agropecuário não somente ecoou sua revolta no Congresso, como fez gestões junto ao Ministério da Agricultura. O resultado foi que, no final, o governo manteve a decisão técnica, mas anunciou mecanismos alternativos de proteção, sendo ventilada a possibilidade de aumento do próprio imposto de importação. Ou seja, sentiu o golpe, mas ficou de pé.

Bens de capital

O segundo “jab” veio com a própria mudança das regras do regime especial para desoneração das importações de bens de capital e de informática e telecomunicação, o ex-tarifário. As novas regras inovaram ao estabelecer padrões de comparação entre o produto que se deseja importar e o produto produzido nacionalmente.

Novamente, a revolta do setor produtivo nacional ecoou não somente no Ministério da Economia, mas também entre deputados e senadores, inclusive em de uma audiência pública no Senado bastante tensa, que reuniu auxiliares do ministro Paulo Guedes e representantes do setor produtivo nacional. O resultado prático foi a não aplicação das novas regras do regime ex-tarifário até que sobreviesse uma regulamentação sobre as novas regras. Ou seja, primeiro “knock down”.

O terceiro “jab” foi menos pontual, mas não menos impactante. A lentidão para a tomada de decisões executivas sobre temas de comércio, ainda que tal incumbência estivesse concentrada apenas na Secint acabou afetando negativamente a imagem dessa nova governança.

Neste ponto, os próprios processos de ex-tarifário se tornaram demasiados lentos, bem como outros mecanismos de alteração tarifária, como inclusão de produtos na Lista de Exceções à Tarifa Externa Comum (Letec), o que causou descontentamento geral do setor privado.

Combate

Antes de sofrer um “knock out”, o governo parece ter apelado a um “clinch” para rever sua postura e, no retorno ao combate, optou por uma estratégia conservadora. Ou seja, em vez de aprofundar a mudança da estrutura e no processo de tomada de decisão do comércio internacional, concentrada no Ministério da Economia, resolveu reanimar a figura já longínqua do órgão colegiado que decide praticamente tudo de relevante, por meio do Decreto nº 10.044, de 4 de outubro de 2019.

O Decreto em questão praticamente restabeleceu toda a estrutura e a organização da Camex pré-Bolsonaro. O colegiado de ministros voltou na forma de um Conselho de Estratégia Comercial, sendo a sua composição reduzida de nove para seis membros, incluída a figura do Presidente da República, que também o preside.

Na sua composição estão também os ministros da Casa Civil, da Defesa, das Relações Exteriores, da Economia e da Agricultura. Os mesmos devem se reunir a cada seis meses, decidem por maioria simples e, em eventuais impasses, o voto de desempate é do presidente.

Esse conselho estratégico tente a ter eficácia reduzida, até pela periodicidade das reuniões, mas também pelo provável caráter etéreo dos temas em discussão. O outro conselho da Camex — formado prioritariamente por secretários-executivos — deve ser mais relevante ao operador de comércio internacional e também foi restabelecido.

Composição

O antigo Comitê Executivo de Gestão (Gecex) foi reativado com o mesmo nome, mas com composição diferente e atribuições mais robustas. Sua atual composição é de 11 membros, sendo 10 votantes e, desses, cinco oriundos do Ministério da Economia, inclusive o ministro Paulo Guedes seu integrante e presidente. A sua reunião ocorrerá mensalmente, sua decisão se dará por maioria simples. Eventuais impasses serão decididos pelo Conselho de Estratégia Comercial.

De acordo com o novo Decreto, o Gecex será competente para, entre outras incumbências, estabelecer as alíquotas do imposto de importação e exportação, a aplicação ou renovação de medidas de defesa comercial, entre outros.

Outro órgão que foi retomado pelo novo decreto foi o Conselho Consultivo do Setor Privado, cuja composição agrega, além do Secretário da Secint, que o preside, e do secretário-geral das Relações Exteriores, representantes de empresas, bem como entidades de defesa dos consumidores e a comunidade acadêmica.

Esse colegiado não teve relevância antes, e dificilmente terá agora. Fica a nota da ausência no rol de participantes do Conselho das confederações, federações e associações, onde está hoje a maior parte da massa crítica em matéria de comércio exterior no Brasil.

A Secretaria-Executiva da Camex permanece com a sua função de coordenadora, sendo de sua responsabilidade garantir o funcionamento fluido da Camex. Quando não tinha função (o que ocorreu durante todo primeiro semestre), pouco foi questionado da eficiência dos novos servidores que lá estão. Agora que a Secretaria-Executiva precisará colocar essas reuniões de pé todo mês (caso do Gecex), fica a dúvida do que será entregue.

Diante disso, ficou definida a inserção do presidente da República como responsável final pela condução de temas estratégicos de defesa comercial, uma vez que, num impasse de um órgão de composição paritária, a decisão final é sua.

Comércio exterior foi objeto de raros pronunciamentos do presidente. Não é assunto que lhe agrade. A esperança é de que a presença de Bolsonaro confira um pouco mais de resistência para que, mesmo com todos esses golpes, as decisões dessa nova/velha Camex parem de pé.

Brasília, 15h30min

Vicente Nunes