Por LUIZ RECENA GRASSI, de Portugal
O verão europeu ganhou finalmente sua musa: António Guterres. Desde o primeiro grão de trigo a sair de Odessa, região portuária ucraniana, há um mês, esse português dá cartas no conflito entre Rússia e Ucrânia, que acaba de completar seis meses.
Em segundo mandato na Secretaria Geral das Nações Unidas (ONU), ele viu a janela entreaberta e pulou dentro das salas onde se reúnem os pesos pesados das decisões na região belicosa. Na verdade, estava cansado de bater às portas e esperar nas antessalas poderosas da União Europeia, da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e dos Estados Unidos, ainda que condene as ações russas e defenda os interesses da Ucrânia sem pudor ou constrangimento.
Discreto e hábil, fez chegar a todos os ouvidos que importam, o recado que não se deveria pensar ou agir para aniquilar a Rússia, apagá-la do Mapa Mundi para sempre, como babaram, à época, líderes europeus e norte-americanos. A Rússia erra, é perigosa, mas todos precisam dela ainda, cansou de repetir.
Água mole em pedra dura ou pura chatice, não importa. Guterres chegou lá e amplia espaços. Quer manter o escoamento atual de alimentos da Ucrânia, sugeriu grãos russos, recomendou aos europeus e americanos o desbloqueio do mercado de fertilizantes, induziu a que novas medidas sejam todas para amansar o urso russo e não o contrário. Passou a ter uma aposta de paz para espantar espectros do mercado da fome.
Na outra cara da moeda, um trapalhão perdeu a chance do título e agora vai trabalhar. Desde a primeira noite em Zaporijia o italiano Rafael Grossi, diretor da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), é ser insone a vagar pelos radioativos desvãos de uma usina nuclear. Quis tomar conta, devolver à Ucrânia, desmilitarizar, esgrimiu um novo Tchernobyl, por fim, falou mais em inspecionar.
Acusou russos de fecharem-lhe a porta no nariz. Moscou disse “pode vir” e marcou reunião do Conselho de Segurança. Apanharam nos discursos e a inspeção foi liberada. O italiano pediu tempo. Precisava recompor o discurso com Zelenski e Biden, seus mentores escancarados. A inspeção ainda não decolou.
Guterres avisou que vai partejá-la. Todos temem o fantasma Tchernobyl, embora tenha sido erro de homem e máquina. Zaporijia corre mais os riscos de guerra. Os russos deram férias ao pessoal civil da usina. Estamos no verão. Os ucranianos reclamam que é sabotagem para diminuir a geração da usina. Vão produzir mais fake do que os russos, na guerra paralela a tirar do sério a velha mídia. Não se sabe onde isso vai parar nem os estragos que daí virão. Só a Musa salva.
O Correio sabe porque viu
Estava lá. Era janeiro e tinha neve. Três anos e meio depois do acidente, Tchernobyl abriu as portas do complexo para receber jornalistas soviéticos e correspondentes estrangeiros. A 150Km de Kiev, havia velho e robusto carvalho com galhos em forma de cruz. Nele foram enforcados membros da resistência soviética aos nazistas. Era a única testemunha do acidente.
A usina quase vazia ainda operava com três reatores. O quarto estava soterrado por cimento. “Na relação máquina homem, a primeira foi imperfeita e o segundo errou”, disse um diretor de Tchernobyl à época. Erros ou não, o reator ganhou mais cobertura em 30 anos. O terror e o terrorismo continuam aí. Na época, além dos riscos técnicos, ouvimos maus presságios sobre a procriação e a continuidade da espécie humana. Nada ocorreu e que assim seja. É bom ter Tchernobyl presente e também não estimular terror e terrorismo.