Artigo: Mortos pedem silêncio

Compartilhe

Por LUIZ RECENA GRASSI, de Portugal

“Lamentável”. Econômico nas palavras, o antigo correspondente soviet/russo resumiu seu sentimento em relação à morte de Mikhail Gorbachev, aos 91 anos. E completou: “Foi pessoa controvertida, para uns, herói, para outros, traidor. Para a Rússia, deu a liberdade, abriu-a para o mundo. Mas o país até agora não conseguiu tirar proveito dessa liberdade”.

Amigos moscovitas começam a fazer balanços, condição em que devem ficar por algum tempo. “É muito difícil expressar tudo o que sinto em poucas frases. Tantas recordações! A liberdade de expressão (Glassnost) que nos trouxe foi a maior conquista da Perestroika. Ficamos embriagados, a discutir qualquer tema sem receio ou medo. A economia não ajudou e piorou a situação. Houve marchas sob o slogan “Gorbachev vá embora”. Temos um ditado que diz: “queria o melhor, mas acabou como sempre, no fracasso das reformas”.

Meu amigo ainda é jovem e está na ativa, sofrendo com as medidas econômicas anti russas. “Confesso que estou meio para enlutada”, escreve uma amiga daquela época. Brasileira e discretamente, torcíamos por ele. Aliás, muitos torciam por ele mundo afora: ocidentais, democratas, liberais, humanistas. Parecia que o mundo iria mudar. E mudou. Mesmo com a oposição interna dos burocratas, dos bolcheviques empedernidos e dos secadores em geral, a Rússia assinou o segundo grande ato da história política moderna do nosso mundo.

Em menos de 80 anos, vieram a Revolução Soviética e o final da própria, tudo sempre em grande estilo. O primeiro ato, dirigido por Lenin pulverizou principalmente alguns paradigmas seculares do capital e do cristianismo. Pecado duplo todo dia revisado e cobrado da Rússia com juros.

No segundo lance, quase ao final do século, Mikhail Sergueievitch Gorbachev surge como diretor e personagem central. Foi um grande momento para o mundo, ganhou adeptos e simpatizantes entre ocidentais, americanos do Norte e da América do Sul, árabes, pacifistas, pessoas sensíveis e até cristãos.

Pouco mais, pouco menos, éramos muitos a apostar no sucesso dele. Só não o apoiaram em casa. Velhos bolcheviques, burocratas cheirando a mofo, invejosos de todo o jaez. Meus amigos que sofrem com a guerra estão tristes também. Uma escreveu para lembrar: ele tinha um pé no futuro e o outro acorrentado no passado. O homem que queria mudar perdeu, morreu. Não é mais figurante da história, é um destaque, um grande vulto. O resto é silêncio. Não façamos brindes ruidosos, deixemos os mortos a dormir em paz.

O CORREIO SABE PORQUE VIU

Estava lá. Quando caiu o Muro de Berlim, houve repercussão mundial. Em Moscou, o “Das Mauer” só caiu no dia seguinte. A notícia circulou cedo porque, na noite anterior, o fato foi tarde, a mídia soviética dormia. Gorbachev não gostou, tinha ido a Berlim Oriental dar o beijo da morte em Erich Honecker e ficara à espera dos resultados.

Cabeças rolaram como ocorrera antes na Armênia, após forte terremoto. Sobraram as casas de pedra, caíram as casas populares. Armênios de São Paulo levaram ajuda. Encontraram um líder com as mão cheias e terra a perguntar “onde está o cimento que mandamos para cá?”.

No principal telejornal da noite, o líder descobriu a corrupção dos burocratas da região a desviar materiais. O do povo também viu. Gorbatchov gostava muito da sua Glassnost. Os burocratas babavam nas gravatas e explodiam nas iras reprimidas.

Vicente Nunes