IMG_2934

ARTIGO: Inteligência Artificial, ditadura e Elis Regina

Publicado em Economia

FERNANDO THOMPSON (*)

Em 2022, os pesquisadores Silva, M. A. D. C., Campos, P. H. P., & Costa, publicaram na Revista Brasileira de História, importante artigo que desnuda o apoio da montadora alemã Volkswagen à ditadura militar, que, por duas décadas, dominou a política brasileira, com um regime ancorado na repressão. O artigo mostra que, em 2020, a direção da VW fechou acordo com o Ministério Público Federal (MPF), no qual admitiu que colaborou com o aparato de repressão aos seus trabalhadores. A empresa se comprometeu a pagar indenização de R$ 36 milhões para ressarcir ex-funcionários que sofreram com violações aos direitos humanos.

 

Esta semana, a VW divulgou comercial para comemorar seus 70 anos de Brasil, que movimentou as redes sociais. Usando recursos da Inteligência Artificial (IA), a montadora promoveu o mais esperado dueto musical da MPB: Elis Regina e sua filha, Maria Rita, cantaram a icônica música “Como nosso Pais”, de Belchior. O filme tem 121segundos e já entra para o rol da propaganda nacional. Mas esse título não veio apenas pelo mérito de juntar Elis (falecida em 1982) com Maria Rita. O produtor musical João Marcello Bôscoli, filho mais velho de Elis, revelou ter ficado emocionado ao ver no comercial sua mãe e a irmã cantando juntas.

 

Ao lado dos elogios, muitos internautas atacaram o fato de Elis, perseguida pela ditadura, ser usada como garota propaganda de uma das empresas que apoiaram a ditadura. Deixemos esse debate para outros. Aqui, vamos discutir os novos desafios que surgem com a IA. Ao lado de vídeos fake news (onde pessoas podem ser usadas para falar textos que nunca disseram), temos o dilema dos direitos de uso de imagem após a morte. Podem os herdeiros explorar economicamente a imagem dos pais, mesmo quando uso vai contra as crenças daqueles?

 

Monyca Motta, mestre em direito do entretenimento pela Universidade de Westminster, em Londres, e doutoranda na NOVA FCSH, onde pesquisa a regulação da privacidade de pessoas públicas e seu relacionamento com a mídia, diz que a utilização da imagem de pessoas já falecidas em campanhas publicitárias não é novidade. Segundo ela, o direito de publicidade pós-morte é, inclusive, reconhecido por lei em diversos estados americanos, com características e duração variadas, porém, entendido como algo semelhante a direitos autorais, que é transmitido aos herdeiros como mais um ativo intangível e pode ser explorado comercialmente.

 

A título de exemplo, na Califórnia, foi criado pelo Celebrity Rights Act, promulgado em 1985, sendo a proteção desse direito de até 70 anos após a morte da celebridade. No estado de Nova York, a duração é de 40 anos. No Brasil, nossa legislação não prevê exatamente um direito de publicidade pós-morte, contudo, o código civil, em seu artigo 20, reconhece o direito dos herdeiros e familiares de proibir a utilização da imagem do falecido/a e até de requerer indenização, portanto, caberia, sim, a interpretação tácita de que quem pode proibir poderia também autorizar, diz Monyca.

 

Mas até onde herdeiros teriam o poder de expor ao contraditório as crenças (religiosas ou políticas), em troca de algumas moedas? Por exemplo, uma pessoa que sempre em vida foi contra o aborto, pode, após sua morte, ser usada para apoiar uma campanha pró-aborto? Pode um líder negro virar garoto propaganda de líder que apoia ideias racistas? Os avanços da IA trazem novos dilemas éticos. Teria Elis aprovado esse comercial?

 

Uma vez, Elis cantou:

 

“Alô, Alô marciano”, de Rita Lee e Roberto de Carvalho:

 

“Alô, alô Marciano
Aqui quem fala é da Terra
Pra variar, estamos em guerra
Você não imagina a loucura”

 

(*) Jornalista e Doutorando em Ciências da Comunicação UNL