Artigo: Amor, política, eternidade

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Por LUIZ RECENA GRASSI

A História passou na Praça Vermelha e só aparatchik não viu. Outros viram e confirmaram no sábado de um novo outono, 30 anos depois. Milhares de russos foram ao Palácio das Colunas prestar suas últimas homenagens a uma pessoa que mudou a história do mundo no final do século passado e depois perdeu. Foi ridicularizado e chamado de ingênuo e traidor pelos guerreiros antes de perder o poder. Foi humilhado post mortem, não ganhou honras de Estado e enterrado em Novadiévitch, uma espécie de cemitério B para ex-dirigentes.

Mikhail Gorbatchov repousa agora ao lado da mulher Raíssa, que sacudiu o país junto com o marido. E a alguns metros de Nikita Khruschov, reformista derrubado 20 anos antes. Erro dele: denunciar crimes de Stálin e antigos líderes.

Putin também não viu. No início, porque jovem e protegido do prefeito de Leningrado, Sobtchak, parceiro próximo de Gorby no projeto de reformas. Depois, porque criou asas e, mesmo com um líder em casa, foi na fonte, aprimorar o projeto próprio. Elogiado, subiu na vida. E não deu outra: traiu Gorby e os princípios dele. Atirou forte, feio e deselegante ao tildar a Perestroika de fracasso histórico do século.

São 30 anos da Perestroika, é justo avisar que outros também não avaliaram com correção o que ocorria. Na União Europeia, nos Estados Unidos, até no Brasil, onde se pensou que a Guerra Fria voltaria. Não voltou, Mikhail Gorbatchov morreu e Putin caminha solitário pelos corredores do Kremlin com ideia fixa de ganhar a guerra contra a Ucrânia de um líder despreparado para conflitos, marionete de países poderosos. Só.

Houve mais desprezo de burocratas mundo afora: a arrogância dos yanques, o azedume pernóstico dos ingleses, a ironia derrotada dos cubanos. De outros naipes saíram gestos positivos. O presidente dos EUA, a primeira-ministra da Inglaterra. Silêncio no Caribe. Fidel disse: “está errado”. Pátria e morte, juntas, podem significar liberdade. Perdeu a mesada e a ilha ficou mais pobre com safras de cana aquém do previsto e necessário.

Quem perdeu mais foi a URRS. A Rússia ao voltar às guerras; e Gorbatchov. Reduziu mísseis, acabou a guerra do Afeganistão, abriu a imprensa, a discussão, fez eleições limpas; só não obteve o principal: não convenceu os aparatchik. Perdeu. Caiu. Morreu. Viu bastante e longe. Entrou de vez para a História.

O CORREIO SABE PORQUE VIU

Estava lá. A primeira vez que estive em Novadiévitch foi meses após ter chegado. Morrera o presidente da agência TASS e fomos vários colegas ao enterro. Era alto dirigente, por mérito e ligações políticas. Defensor da Perestroika e militante da Glassnost. Também por isso fui, pois dava consultoria à agência em jornalismo versão brasileira. Teve honras especiais, tiros de fuzil e imponente desfile de comendas que recebera em vida.

Carregadas sobre almofadas por soldados em farda de gala a passos marciais, as medalhas foram devolvidas ao Estado soviético, dono delas, que as pedia de volta porque temia vê-las no mercado negro ou na especulação clandestina de antiquários. Nada disso impediu, porém, que antes do fim da URSS entrassem em descarada oferta às escondidas. Soube de brasileiros amadores e colecionadores europeus e norte americanos que se deram bem no negócio. Novadiévitch está lá, bem cuidado, referencial. O reformista Khruschov a alguns metros de Gorbatchov, este ao lado de Raíssa, o grande amor. Agora eternos.

Vicente Nunes