Artigo: A guilhotina, antes e agora

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MIGUEL ARRAES*

“A Revolução, como Saturno, devora seus próprios filhos”. Essas foram as últimas palavras de um líder girondino — grupo político mais moderado do início da Revolução Francesa (1789-1799) — condenado à morte pelo Tribunal Revolucionário. São também as primeiras deste artigo. Caem como uma luva no presente momento, do affaire Jair Bolsonaro/Sergio Moro e das consecutivas quedas de ministros da saúde. De um lado, o ex-juiz, que fora pilar de sustentação do governo, segue sendo apunhalado sem dó pelo clã bolsonarista; de outro, os médicos, que ousaram levantar a voz contra disparates ideológicos no combate à pandemia, foram rapidamente calados.

Sento-me ao sofá e ligo a tevê. O que vejo? A face de um presidente inebriado pelo poder, que já não distingue o bem próprio do bem comum, ou o justo do injusto. Recordo-me, voltando à Revolução Francesa, de um de seus mentores, um certo Maximilien Robespierre, que, a pretexto de proteger do terror a nação francesa, levou-a à fase do Terror — e ele próprio foi um de seus comandantes. Sua paranoia conduziu à guilhotina, primeiro, religiosos e nobres, como o próprio rei; depois, revolucionários moderados, como os girondinos Vergniaud e Brissot; por fim, seus próprios pares, como os jacobinos Hébert e Danton.

Sergio Moro, e também os ex-ministros Gustavo Bebianno, Santos Cruz, Henrique Mandetta e, mais recentemente, Nelson Teich, ao que tudo indica, pertenciam à facção girondina do governo Bolsonaro. Moderados, acreditaram que a atual gestão poderia ventilar os salões mofados de Brasília com novas práticas. Um erro de cálculo — todos foram enviados à guilhotina virtual.

A verdade é que o Tribunal Revolucionário do Governo, materializado nas redes sociais, é mesmo implacável, como foi o outro. Não há piedade nem diante daquele que, no dia anterior, fora o maior herói. Para os membros do Tribunal, os bolsonaristas-raiz, Moro foi baluarte moral até acusar Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal; Mandetta e Teich eram elogiados até se voltarem contra as ideias pseudocientíficas do presidente… Se Paulo Guedes, último “girondino” que restou ao governo, entrar em conflito com o clã presidencial, não me admirarei se for acusado de ser socialista — ainda que hoje o chamado Chicago boy seja ídolo dos “liberais na economia”.

Pois bem, prezado bolsonarista-raiz, amigo membro do Tribunal Revolucionário: agora é a você que me dirijo. Não se espante se o próximo alvo desse Judiciário paralelo for você. O poder pode ser como o vinho: a primeira taça é suave e prazerosa, mas conforme se avança na garrafa, a loucura apunhala a razão e assume o controle. E então, já não há mais amigos. Ou mesmo pessoas. Só o vinho mesmo.

E lembre-se, prezado, de como teve fim o terror. O louco Robespierre, no auge de sua paranoia, matou todos seus amigos. Com exceção de um: a guilhotina, que o recebeu de bom grado. Ela, como a urna, não se acanha em mudar de lado.

(*) Graduando de Direito (PUC-Rio/UCL – University College London) e Letras – Língua Portuguesa e Literaturas (UniRio).

Brasília, 07h21min

Vicente Nunes