“E para matar a tristeza, só mesa de bar. Quero tomar todas, vou me embriagar. Se eu pegar no sono, me deite no chão” (Reginaldo Rossi)
>> DIEGO AMORIM
A insistência de motoristas em beber e dirigir sustenta o poder do alcoolismo de matar milhares de pessoas todos os anos nas estradas do país. Mesmo com a Lei Seca, em vigor desde 2008, e as sucessivas investidas desde então para fechar o cerco contra quem pega o volante embriagado, um em cada quatro brasileiros ainda assume dirigir depois de ter consumido bebida alcoólica. No caso dos homens, a incidência é ainda maior, de 27,4%, segundo dados do Ministério da Saúde.
A teimosia custa caro. Em unidades hospitalares de emergência nas capitais e no Distrito Federal, 21,2% dos atendimentos de vítimas de acidentes de trânsito guardam relação com o álcool. O condutor do veículo costuma ser a principal vítima (22,3%), seguido de pedestres (21,4%) e passageiros (17,7%). “Não é mais admissível que alguém tenha coragem de beber e dirigir”, diz o diretor do Departamento de Políticas de Saúde e Segurança Ocupacional do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Marco Antônio Gomes Pérez.
O efeito devastador da bebida nas estradas fica claro nas mortes e nos gastos com reabilitação de quem sobrevive aos acidentes. Mas pode ser medido também pela dor e pela improdutividade de familiares que tiveram a vida arrasada pela combinação entre álcool e direção. Apesar dos avanços após um maior rigor das normas — incluindo a proibição da venda de bebidas às margens de rodovias —, as trágicas histórias regadas pela embriaguez ao volante não cessam.
Desculpas
Entre caminhoneiros, os impactos do alcoolismo reverberam em cascata na economia brasileira. Quase 70% da produção do país passa pelas estradas, e tudo o que acontece nelas influencia no Produto Interno Bruto (PIB). “Quando não provoca acidentes, o motorista embriagado atrasa a entrega da carga, perde parte da mercadoria, além de gerar multas para as empresas”, enumera o presidente da Associação Nacional dos Caminhoneiros (Antrac), Benedito Pantalhão.
As doses de pinga e os copos de cerveja são consumidos no meio do caminho ou nas paradas para descanso. “Nossa carga horária é pesada e estressante, somos muito judiados pela profissão e temos pouco reconhecimento. Mas isso não pode dar ao caminhoneiro o direito de beber”, comenta Pantalhão, que se lembra de 10 histórias de companheiros demitidos por conta da bebida somente em 2014. “A pessoa que bebe precisa de tratamento. É uma questão econômica e de saúde pública, que afeta todo mundo se não for tratada com seriedade”, completa.
Em postos de combustíveis da BR-020 — rodovia que corta cinco unidades da Federação —, caminhoneiros assumem beber antes de chegar ao destino. Quando se entregam ao hábito, reconhecem que o rendimento ao volante cai, pelo menos, 40%. “Rodo, em média, mil quilômetros por dia. Mas quando estou de ressaca, não consigo dirigir metade disso. Fico parando para cochilar a cada duas horas”, conta o motorista de 41 anos que leva carvão do DF para Minas Gerais. “Mas tem gente pior do que eu, que não consegue nem subir no caminhão.”
O álcool é mais comum nas estradas do que o próprio rebite, o comprimido de anfetamina usado indiscriminadamente para espantar o sono. “Tem cara que se sente bem dirigindo bêbado, sabia? Diz até que dirige melhor”, comenta um caminhoneiro com 20 anos de estrada. O amigo dele, com cinco anos a mais de experiência, retruca: “Isso não existe. Quando você está bêbado e alguém buzina, parece que passa um trem do seu lado. A cabeça pesa, fica difícil de fazer curvas”.
Em um posto de gasolina na saída de Brasília, outro motorista com quase três décadas percorrendo as rodovias do país toma a terceira cerveja enquanto prepara o jantar de uma quarta-feira. Eram quase 21h e, antes das 7h do dia seguinte, ele pretendia estar de pé para pegar a estrada. “Bebo quatro latinhas ou garrafinhas todos os dias. E bebo porque gosto, para esquecer os problemas”, diz o autônomo, que evita fazer compromissos na segunda-feira, “o dia da ressaca”, define ele. “Mas terça eu já estou sarado”, garante. Reconhecendo ter uma relação pouco sadia com a bebida, o caminhoneiro conta ter perdido muitos trabalhos. “Atraso a entrega e acabo inventando umas histórias para justificar, mas o patrão não perdoa.”
Na construção, busca por “remédio”
Antes das 7h, um carro estacionado embaixo de uma árvore, com a porta do bagageiro levantada, se transforma em boteco improvisado próximo aos canteiros de obras do Noroeste, em Brasília. Das dezenas de operários que chegam para o trabalho um se aproxima perguntando do “remédio”. Ele se refere à dose de cachaça, armazenada em garrafas pet de dois litros. O copinho custa R$ 0,50. Na hora do almoço, cenas como essa se repetem.
O setor da construção civil, que emprega aproximadamente 3 milhões de pessoas no Brasil, está entre os que mais sofrem os reflexos do alcoolismo. Não há dúvidas quanto à contribuição da bebida para os inúmeros acidentes de trabalho. “Essa é uma associação óbvia, ainda que seja difícil contabilizá-la. Mas imagine subir em um andaime sem o equilíbrio necessário, mesmo com equipamentos de segurança?”, instiga o presidente licenciado do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Distrito Federal (Sinduscon-DF), Julio Peres.
Nos últimos anos, as grandes construtoras declararam uma verdadeira cruzada contra o álcool. Além da questão da segurança e de aumentar a rotatividade da equipe, o alcoolismo diminui a produtividade nos canteiros, em média, em 40%, o que atrasa as obras e afeta a qualidade das edificações. O alcoolismo favorece, ainda, as brigas. Em uma construção da Asa Norte, área nobre do Distrito Federal, dois operários embriagados se desentenderam a uma altura de mais de 10 metros, antes de caírem. Um morreu na hora. O sobrevivente foi demitido após receber alta do hospital.
Socorro
Para inibir o consumo de bebida pelos operários, os patrões passaram a adotar estratégias, como o fim de qualquer pagamento em dinheiro e a instalação de restaurantes comunitários dentro dos canteiros, evitando que os funcionários saiam do ambiente de trabalho. A maior rigidez passa por aconselhamentos e punições a quem é flagrado bêbado ou ingerindo álcool durante o expediente.
Em Brasília, os empresários pediram ajuda do governo local para conter a venda de bebidas alcoólicas nos arredores das obras. Ainda não surtiu efeito. “Nossa maior preocupação é essa. Se tem cachaça à venda por perto, sempre terá uma turma disposta a beber”, comenta o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do Mobiliário de Brasília (Sticmb), Edgard de Paula Viana. “Sabemos que não estamos em uma luta fácil”, lamenta.
A atenção maior das empresas não intimida quem bebe na hora do batente. Nos canteiros, são comuns relatos de garrafas de cachaça escondidas em montes de areia e de funcionários enrolando copos com fita isolante para enganar os encarregados. “Trabalho bêbado mesmo. Às vezes, chego aqui cheirando a álcool. E nunca aconteceu nada comigo. O que vale é manter o foco e a fé em Deus, não é?”, pergunta um operário de 23 anos, que trabalha há seis na construção civil. “Muita gente bebe escondido do patrão e depois fica dormindo em pé na obra: um perigo. O serviço não rende e a pessoa pode morrer. Achar que não atrapalha é ingenuidade”, emenda um colega com o dobro de experiência.
Procure ajuda
Não são muitas as opções de ajuda gratuita para quem sofre de alcoolismo no Brasil. Os Alcoólicos Anônimos estão espalhados pelo país. Em Brasília, a irmandade tem escritório no Conic (Setor de Diversões Sul) e em Taguatinga: atendem pelos telefones 3226-0091 e 3351-9644, respectivamente. Entidades religiosas também oferecem apoio para quem deseja largar o vício. Na capital federal, o contato da Pastoral da Sobriedade é o coordenador Célio de Souza, localizados pelos celulares 8234-6152/9217-8464. Já os familiares de alcoólatras têm a opção de recorrer aos grupos do Al-Anon, cujas informações podem ser obtidas no 3273-0404.
“Iluminação divina”
Em Wall Street, heróis são grandes financistas e homens de negócios. O corretor da Bolsa de Valores de Nova York Bill Wilson foi um deles, mas deixou seu nome na história por outro motivo. “Alcoólico em potencial”, como se definia, conquistou fama e dinheiro no mercado de capitais antes de perder tudo e fundar, em 1935, ao lado do cirurgião Robert Smith, em Ohio, nos Estados Unidos, os Alcoólicos Anônimos, hoje presentes em 150 países.
Para Bill, a bebida tinha virado necessidade, não apenas um prazer. As farras o transformaram em um “lobo solitário”, conforme escreveu. No dia em que o inferno desabou sobre Wall Street, em outubro de 1929, ele saiu cambaleando de um bar de hotel para o escritório de corretagem. “Homens se atiravam do alto dos prédios no centro financeiro. Eu não pularia. Voltei para o bar”, contou.
Na medida em que a carreira arruinava por conta da crise, Bill recorria à bebida para tentar ter de volta a determinação de vencer. Afundava-se ainda mais. Na última internação por conta das complicações provocadas pelo álcool, teve uma “iluminação divina”. Decidiu mudar de vida e ajudar outras pessoas. Morreu em 24 de janeiro de 1971, aos 75 anos. Embora tenha dado o último gole antes de fundar o AA, não conseguiu parar de fumar, o que o levou a desenvolver um enfisema.
Igreja também sofre
Nem padre escapa do alcoolismo. Para livrar os religiosos da tentação, há igrejas que chegam a substituir o vinho por suco de uva durante a missa. A principal orientação, porém, tem sido banir as bebidas alcoólicas das festas das paróquias. No ano passado, bispos do Paraná divulgaram uma nota pedindo a todos os fiéis que iniciem “uma caminhada de conscientização” nesse sentido. O documento recebeu o carimbo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), embora o assunto ainda encontre bastante resistência internamente.
Somente no Distrito Federal, há 17 grupos da Pastoral da Sobriedade, uma forma que a Igreja Católica encontrou de alcançar leigos e religiosos com problemas com o álcool. “As pessoas não têm consciência do perigo da bebida. Acham que têm o controle da situação, mas a maioria não tem”, atesta o coordenador dos grupos, Célio de Souza, 40 anos.
A pastoral acolhe pessoas interessadas em se desgarrar de qualquer dependência química, incluindo o crack. Mas o álcool é a substância que demanda mais trabalho. “Falam muito das drogas ilícitas e se esquecem de que as bebidas alcoólicas devastam a vida, a profissão e a família de muito mais gente. O álcool é uma droga acessível e aceitável pela sociedade”, diz Souza.
Brasília, 17h10min