Há exatos 518 anos, a intolerância religiosa dos católicos provocava uma das maiores tragédias da história de Portugal: o massacre de Lisboa, ou Matança de Páscoa, quando cerca de quatro mil judeus foram espancados e assassinados em praça pública.
Segundo a doutora em história e arqueologia e sócia da Espelho do Passado, Ariana Webb Henriques, entre os séculos XV e XIX, os judeus foram perseguidos em vários países por terem uma religião diferente do cristianismo. A Igreja Católica era forte na Europa e diversos atos bárbaros foram cometidos na tentativa de manter essa ordem religiosa.
Séculos depois, Portugal instituiu leis e monumentos na tentativa de reparação histórica aos judeus. A Lei da Nacionalidade Portuguesa para descendentes de judeus sefarditas, instituída em 2013, foi uma dessas ações, com o objetivo de possibilitar um retorno desse grupo à comunidade lusitana.
Para a jurista e fundadora da Destinos Objetivos, Beatriz Sidrim, inicialmente, a aquisição do direito à cidadania portuguesa pelos judeus sefarditas exigia a comprovação de vínculos com a comunidade israelita, dispensando o cumprimento de requisitos como residência em Portugal e conhecimento da língua portuguesa.
Com o passar dos anos, a regra jurídica sofreu alterações e novos requisitos foram incluídos. Recentemente, a legislação passou a exigir, além do pertencimento à comunidade israelita, um tempo de residência de três anos em Portugal. A partir de 2025, haverá uma comissão de avaliação para homologar os pedidos de nacionalidade portuguesa.
Apesar das mudanças, Beatriz diz que é importante ter em vista que a legislação continua e o direito não foi extinto. Como cidadã portuguesa que obteve cidadania por meio da lei de judeus sefarditas, a advogada Karine Egypto sente que hoje detém mais do que um documento, mas, sim, uma conexão com uma história de resiliência e superação.
“Como advogada inscrita na Ordem Portuguesa, vejo que essa lei representa uma justa reparação histórica, sendo uma ferramenta poderosa de que a justiça transcende o tempo e o espaço, e que devemos sempre buscar corrigir as injustiças do passado. Estou orgulhosa de fazer duplamente parte desse processo e de poder usar meu conhecimento jurídico para promover a justiça”, ressalta Karine.
Processo migratório
A diáspora dos judeus teve várias fases históricas. A que provocou o processo migratório para o continente europeu aconteceu depois da tomada de Jerusalém pelos romanos, por volta do ano 70 depois de Cristo, provocando uma ampla dispersão para diversos países. Uma forte comunidade judaica foi formada na Península Ibérica, que, em hebraico, era chamada de Sefarad.
Ariana Webb Henriques, sócia da Espelho do Passado, lembra que, em 1496, D. Manuel decretou a expulsão dos judeus de Portugal, que passaram a ser perseguidos. “Contudo, com receio que muitos abandonassem o país com os seus capitais, o rei ordenou que, aqueles que se convertessem ao cristianismo, poderiam permanecer em território luso. Esses judeus, que foram batizados à força, passaram a ser chamados de cristãos-novos”, ressalta.
O clima de hostilidade, no entanto, continuou, resultando no chamado Massacre de Lisboa, que começou em 19 de abril de 1506, na Igreja do Convento de São Domingos, em Lisboa. Naquele dia, um grupo de fiéis, que assistia à missa, gritou milagre após uma imagem de Cristo ter sido iluminada por um raio de luz. Um cristão-novo disse que era apenas um reflexo do sol, dando início à tragédia. No intervalo de três dias, quase quatro mil pessoas da comunidade judaica foram espancadas e assassinadas.
Ariana afirma que os judeus convertidos ao catolicismo eram identificados por denúncias de populares. Na época, o país também passava por um surto de peste e uma seca prolongada, o que acirrou ainda mais os ânimos atribuindo aos judeus a culpa dessas intempéries naturais. “O massacre de Lisboa é uma página triste da nossa história”, assinala.
Em 2008, um memorial com a estrela de Davi foi colocado no largo de São Domingos para que Lisboa nunca se esqueça daquele acontecimento. “O conhecimento histórico é fundamental para revisitarmos os fatos marcantes e perceber a formação social de cada povo e seus comportamentos e, assim, estabelecermos senso crítico e evitarmos cometer os mesmos erros do passado”, complementa a doutora em história e arqueologia.