Sentindo-se humilhada e desamparada, Letícia tem sido jogada de um hospital para outro, lidando com urgências fechadas, médicos despreparados, descaso das autoridades e, algumas vezes, até xenofobia, por ser imigrante.
O autismo do filho da brasileira é de um grau tão elevado, que, quando ele entra em surto, fica extremamente agressivo. Tanto que ele já bateu nela com força, a ponto de o companheiro dela, um português, ter de levá-la ao hospital.
Na quarta-feira (13/12), o jovem entrou em crise. A mãe tentou acalmá-lo com um medicamento usado em caso de emergência. No entanto, o remédio não surtiu efeito. Letícia acabou recorrendo a mais duas doses, mas sem sucesso.
Um dia se passou, e nada de o menino dormir. Exausta, ela e o companheiro recorreram, então, a mais três doses do medicamento, que não surtiram efeito. Agitadíssimo, o garoto continuava andando o tempo todo pela casa.
Veio o terceiro dia de surto, e, sem dormir, a brasileira deu mais cinco doses, espaçadas, do remédio. Apesar de toda a medicação, nada continha o filho. Na noite anterior, por sinal, ele mudou todos os móveis da casa de lugar.
Em busca de ajuda veio a decepção
Sem ter mais o que fazer, e com a emergência do hospital mais perto, em Barreiro, fechada, Letícia ligou para o Instituto Nacional de Emergência Médica (Inem), o Samu de Portugal. O atendente, passou a ligação para uma médica, que, depois de ouvir todo o relato, disse que mandaria os bombeiros até a casa de Letícia.
A brasileira argumentou que o caso era muito sério, pois o filho estava em crise havia três dias, e que os bombeiros não saberiam como atendê-lo. O melhor, segundo ela, era que o menino fosse levado para o Hospital Dona Estefânia, onde há pedopsiquiatras, profissionais especializados em autismo.
Letícia foi completamente ignorada. Meia hora depois, além da ambulância dos bombeiros, um carro de polícia, com três agentes, chegou à casa dela, que fica na Moita, a cerca de 16 quilômetros de Lisboa. Os policiais queriam se certificar de que não tinha havido violência contra o garoto.
Mais uma vez, a brasileira implorou que para o filho fosse encaminhado para o Dona Estefânia, o melhor local para atendê-lo. Os bombeiros, contudo, bateram o pé e levaram o adolescente para o hospital de Setúbal.
“Pedi, então, que eu e meu companheiro, que estávamos sem dormir havia três dias, fôssemos juntos na ambulância, até para ajudarmos em caso de um novo surto, mas só permitiram que uma pessoa acompanhasse meu filho. Meu companheiro teve de ir dirigindo por mais de meia hora, mesmo destruído”, afirma.
Como já alertado por Letícia, ao chegar ao hospital, que estava vazio, uma pediatra disse que, pela aparência do menino, que já tinha tomado cinco doses de calmante em um único dia, não via nenhum sinal de crise grave.
“Expliquei tudo o que havia se passado, mas não adiantou nada. A pediatra só me disse que sabia o que estava fazendo e que não prejudicaria a carreira dela”, relata. A médica, então, decidiu dar mais uma dose de calmante ao garoto — a sexta daquele dia e a décima-segunda em três dias — e colocá-lo em uma maca para ver se ele adormecia.
Mas, em vez de encaminhar o menino para uma sala de atendimento, o deixou deitado em uma maca, num corredor, perto da porta do banheiro. Letícia argumentou que aquilo era um absurdo, uma vez que o hospital estava vazio, mas foi ignorada novamente.
O máximo que o hospital fez foi ceder para a brasileira uma cadeira, para que ela pudesse ficar ao lado da maca do filho. Depois de algumas horas, o adolescente foi mandado para casa e não para o Dona Estefânia, onde espera por um atendimento desde março.
“Enfim, estou com meu filho em casa. Esta noite foi um pouco melhor, ele conseguiu dormir por umas quatro horas, mas estamos devastados. Tudo no quarto dele está trancado, assim como todas as facas e tesouras de casa, para evitar o pior”, relata.
Atestado exigiu denúncia contra descaso
Letícia, que é design de interiores e está há cinco anos em Portugal, relata todo o sofrimento para lidar com a doença gravíssima do filho, que não consegue falar. Ela conta que ele só não está sem estudar, porque conseguiu uma escola para alunos especiais, em que os professores e demais profissionais são preparados para lidar com emergências, inclusive, isolar os estudantes em caso de surto, em segurança, até a chegada do Inem.
Ela ressalta ainda que, mesmo estando há tanto tempo em Portugal, foi somente há seis meses que conseguiu um atestado multiusos, que garante atendimento preferencial para o garoto. Mesmo assim, porque denunciou a demora para o obter o documento à Secretaria de Saúde.
Para conseguir esse atestado, o filho de Letícia teve de passar por um perícia médica. Foi comprovado que ele tem 80% de comprometimento por causa da doença — o mínimo exigido, é de 60%.
“Meu filho é dependente total até para atravessar a rua”, frisa a brasileira. “Fiquei um ano e meio esperando por esse documento. Durante todo esse período, tive que bancar tudo”, acrescenta.
O companheiro de Letícia não é pai do garoto, mas ajuda no que pode. “Uma mãe solo precisa de uma condição mental muito boa para criar um filho com deficiência, porém, é preciso ter o dobro dessa força para poder brigar com o Estado”, afirma ela.