INTERVENÇÃO E FINANCIAMENTO DA SEGURANÇA PÚBLICA
Publicado originalmente pelo Correio Braziliense em 04/04/2018, por Daniel Cerqueira e Renato Sérgio de Lima*
O Brasil vive um quadro de baixo amadurecimento institucional na segurança pública, com polícias desestruturadas, obsoletas, no qual a inteligência e a investigação foram sucateadas em nome da ideia de confronto com o “inimigo”. A gestão, por sua vez, segue a dinâmica das crises, no dia a dia das reuniões de última hora, quando as ações são definidas na base da improvisação e do achismo, sem qualquer planejamento de médio prazo, muito menos estratégico.
É urgente construir um sistema de governança da segurança pública, com regras transparentes, cidadãs e com mecanismos de controle e avaliação de desempenho de todas as instituições envolvidas. Um sistema baseado em evidências, com dados públicos e regras de governança que integrem e coordenem esforços de combate ao crime, prevenção da violência e promoção da cidadania.
Entre as primeiras tarefas desse sistema está o equacionamento do gargalo de financiamento da área, que fica ainda mais dramático pela incapacidade de pensar na lógica da qualidade do gasto público e no aumento da eficiência democrática do trabalho das polícias. É preciso transformar custos em investimentos, a partir de uma forma mais estável de alocação de recursos sem, no entanto, nos restringirmos à velha receita da vinculação orçamentária que engessa o orçamento público.
Um olhar sobre como e onde as unidades da Federação gastam recursos na área da segurança pública exemplifica a falta que tal sistema faz. Para se ter uma ideia, os estados e o Distrito Federal gastaram, em 2016, R$ 67,3 bilhões, sendo que só 0,7% foi lançado contabilmente como despendido com inteligência e informação. O Rio de Janeiro, sob intervenção federal na segurança pública, é um caso emblemático: dos mais de R$ 9 bilhões gastos na área a cada ano, foram destinados para inteligência e informação cerca de R$ 25 mil em 2015 e nenhum centavo em 2016.
Enquanto cerca de 90% dos orçamentos são destinados a pagamentos de salários, encargos e aposentadorias/pensões e 9% são gastos com o custeio da máquina, apenas 1% sobra para investimento e reaparelhamento. Trata-se de um quadro dramático, em que os secretários de segurança têm pouca ou nenhuma margem de flexibilidade.
Nesse tenebroso cenário de desestruturação e fragmentação institucional, o governo federal e o Ministério da Justiça, particularmente, se limitaram a atender no varejo as demandas dos estados por aparelhamento, viaturas etc. (sem nenhuma visão estratégica); ao mesmo tempo em que crescentemente despendem milhões de reais na infrutífera atividade de manter a Força Nacional (FN) e as Forças Armadas de prontidão, nas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
A aposta simplória e perversa do governo federal de saturação do território com as forças armadas dá voto, mas não gera nenhum legado positivo para a segurança pública. Um bom exemplo disso é o México. Em 2006, um presidente impopular, o Felipe Calderón, empregou com força total o Exército para combater o tráfico de drogas. De lá para cá, as taxas de crimes violentos letais, de desaparecimentos e de denúncias de torturas por militares explodiram, sendo que o Exército continua nas ruas.
De fato, segundo as boas práticas internacionais, o papel do governo federal se insere na tríade como: indutor das boas políticas locais; capacitador dos entes subnacionais (gestores e operadores da segurança pública); e financiador das ações efetivas. Sendo que o financiamento tem um papel crucial para induzir a mudança do jogo. No Brasil, um papel adicional seria o de coordenação, sem implicar em subordinação, de esferas de padronização e pactuação de Normas Operacionais e de Regras de Classificação Contábil e/ou Estatística.
A importância de se pensar uma estratégia de financiamento para a segurança pública nesse momento é vital e passa não apenas pelo volume e possíveis fontes de recursos mas, sobretudo, pelo destino dos mesmos, que possam induzir à mudança do equilíbrio perverso na segurança pública. Por último, pensar o financiamento envolve também uma arquitetura de governança que possa garantir o estabelecimento de mecanismos de sistematização, responsabilidades federativas e controle dos recursos, com menos burocracia possível. E, para isso, temos que ter indicadores robustos de desempenho, para que metas e objetivos comuns possam ser estabelecidos.
Estratégias parecidas foram implantadas no Brasil, desde o começo dos anos 1990, nas áreas de educação, assistência social e saúde. Propostas existem, como as que constam em documentos produzidos pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Falta agora vontade política para deixarmos os refletores de lado e investirmos em um sistema de segurança pública orientado para a efetividade cidadã. Que a proposta de criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp), em tramitação no Congresso, ajude o Ministério Extraordinário da Segurança Pública a ser mais do que apenas uma boa intenção. Temos que reduzir o medo e combater a violência com inteligência e planejamento.
*DANIEL CERQUEIRA é Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
*RENATO SÉRGIO DE LIMA é Diretor-Presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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