A situação da segurança pública no país, por qualquer ângulo de análise, é catastrófica. Mais de 60 mil mortes violentas ao ano, atingindo especialmente pessoas jovens, negras, pobres. Um número altíssimo de mortes provocadas por policiais e de policiais que são mortos. O sistema de justiça especialmente moroso para o esclarecimento e a punição de crimes graves, ao mesmo tempo em que é rápido demais para prender, condenar e trancafiar por delitos mais leves, revelando incapacidade persistente de assegurar garantias legais e constitucionais dos acusados. Um sistema carcerário superlotado e dominado por facções criminais, espaço de onde emergem e se articulam novas violências e formas mais complexas de criminalidade. Uma sociedade amedrontada, que espera por soluções eficazes e rápidas, e que tende a apoiar qualquer ação que pareça enérgica o suficiente para interromper um longo e doloroso ciclo de violências.
Desde a redemocratização iniciada nos anos 80, pouco foi feito pelos governos Federal e estaduais para modernizar as ferramentas institucionais de garantia da segurança pública. As corporações policiais e judiciais não foram reformadas, a arquitetura institucional não foi alterada, deixando a União e os municípios como coadjuvantes secundários dos governos estaduais, em geral inaptos para gerenciar as polícias e o sistema penitenciário, e omissos em matéria de prevenção. Os desafios são novos e progressivos, os remédios são ultrapassados, desenhados no passado de uma sociedade que se transforma rapidamente.
No sistema judicial, a demanda social de combate ao crime acabou produzindo uma geração de operadores jurídicos cada vez mais adeptos de um discurso punitivista e pouco comprometido com a ordem democrática, vista como leniente aos criminosos. Alguns membros do Ministério Público têm assumido o papel de arautos da “tolerância zero”, e são coniventes com a violência policial, deixando de cumprir suas atribuições de controle externo da atividade policial e de zelar pelas garantias processuais penais. Membros do Judiciário reproduzem velhos padrões inquisitoriais de tomada de decisão, mantendo prisões processuais indefinidamente e condenando acusados muito mais pelo seu perfil social do que pelas provas apresentadas no processo.
Desde a década de 1990, alguns avanços importantes foram experimentados, como criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Fundo Nacional de Segurança Pública, a aprovação do Estatuto do Desarmamento, a criação do CNJ e o enfrentamento de delitos historicamente desconsiderados pelas instituições, como a violência contra a mulher. A criação do Programa Nacional de Segurança com Cidadania (PRONASCI) vinculou recursos a projetos de estados e municípios e induziu o avanço de ações em que o binômio repressão qualificada e prevenção estivesse articulado. Alguns estados souberam aproveitar as condições favoráveis e implementaram programas de redução da violência. O de maior sucesso foi o Pacto pela Vida, no governo Eduardo Campos, em Pernambuco, cuja força se esvaiu junto com o desaparecimento da liderança política que o impulsionou. Em Minas Gerais, a reestruturação da Defesa Social também produziu efeitos importantes, que refluíram quando suas balizas se enfraqueceram. Também foi elaborado plano de segurança pública no Distrito Federal, que até o presente momento tem conseguido sucesso na redução dos homicídios. .
A falta de continuidade e aperfeiçoamento dos caminhos abertos pelo PRONASCI no governo Dilma, bem como a não realização das reformas estruturais no setor (de responsabilidade dos três poderes), fizeram com que os avanços alcançados rapidamente se esvaíssem. Com a descontinuidade das experiências inovadoras, o quadro atual é desalentador, pois as propostas que hoje estão em pauta no debate apelam para as fórmulas antigas, reativas e retóricas, porém pouco efetivas.
Por parte da sociedade civil, também se percebe uma falta de inovação e liderança, a despeito de movimentos sociais de luta contra a violência serem muito ativos para denunciar a gravidade da situação e a fragilidade de setores sociais que mais sofrem os efeitos da desigualdade e da violência. As universidades se capacitaram nestes anos, formando profissionais qualificados e produzindo conhecimento, com base em novos grupos de pesquisa disseminados pelo país e no financiamento de pesquisas pelas agências de fomento e o governo federal. Organizações não governamentais, como é o caso do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, avançaram na luta por transparência, contribuindo para a produção de dados e diagnósticos mais precisos, e tornando o debate mais rico e plural. Mas os esforços por mudanças não puderam ser mais fortes do que a imensa onda de descrédito que se abateu sobre a sociedade, dando combustível para discursos de ódio e intolerância.
Por tudo isso, entendemos que o momento é grave, exigindo comprometimento e iniciativa. Como atores do campo acadêmico, pretendemos dar a nossa contribuição, com a publicação de artigos semanais para a qualificação do debate sobre justiça e segurança. Somos de diferentes cidades, temos percursos profissionais distintos, pesquisamos ângulos diversos dessa realidade, mas nos unimos em torno da crença de que ainda é possível que a nossa geração contribua com a superação de nossas mazelas históricas. Reconhecemos a importância de atualizar o debate e enfrentar dicotomias superadas, apostando na construção de uma narrativa democrática para a segurança pública, aliando produção de conhecimento e melhoria das ferramentas de gestão com a crítica à cultura autoritária ainda presente nas instituições de justiça e segurança. Acreditamos que abandonar o debate, ainda que duro e difícil, é o caminho mais curto para a disseminação dos discursos de ódio e do fascismo em uma sociedade amedrontada e descrente das instituições.
Para enfrentar as questões colocadas, compartilharemos este espaço nos próximos meses, para abordar os diferentes aspectos envolvidos nas tragédias da violência, mas acima de tudo, discutir as propostas concretas de mudança. Nosso compromisso é duplo: com o livre debate de ideias, e o enfrentamento da violência em suas variadas formas. Convidamos a todos e todas para que acompanhem o blog.
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