Para a atriz Shirley Cruz, Bom Sucesso consegue levar discussões como racismo e homossexualidade com leveza e coragem
Shirley Cruz está feliz como um pinto no lixo com sua participação como Gláucia na novela das 19h, Bom Sucesso. A atriz classifica a trama como “sem dúvida um projeto corajoso”. Em entrevista ao Próximo Capítulo, ela diz que “agradece todos os dias ao universo por estar em um produto tão diferenciado”.
Gláucia é lésbica e negra e ocupa uma posição de destaque na editora Prado Monteiro, um dos principais cenários de Bom Sucesso. Para Shirley isso traz discussões muito interessantes: “Quem sabe essa contribuição ajude a amenizar o preconceito do dia a dia e até reflita na diminuição dos números alarmantes de homossexuais mortos diariamente no Brasil. A vantagem é que a televisão está na casa da gente, inclusive nos lares homofóbicos.”
Na entrevista a seguir, Shirley fala sobre a novela, sobre as séries Jungle pilot e A revolta do Malês e sobre o filme A vida invisível, premiado em Cannes e indicado pelo Brasil para tentar uma vaga no Oscar. Confira!
Entrevista// Shirley Cruz
Qual é a importância de ter uma personagem lésbica sem estereótipos numa novela das 19h no Brasil de hoje?
A televisão te coloca numa vitrine muito potente, então Bom sucesso é uma oportunidade diária para fazer com que o telespectador desenvolva empatia e respeito pela comunidade LGBTQI+. O Brasil ama a telenovela, então essa pode ser uma importante ferramenta para uma sociedade menos oprimida, mais plural e mais tolerante. Quem sabe essa contribuição ajude a amenizar o preconceito do dia a dia e até reflita na diminuição dos números alarmantes de homossexuais mortos diariamente no Brasil. A vantagem é que a televisão está na casa da gente, inclusive nos lares homofóbicos.
Você disse que se inspirou em Marielle Franco para viver a Gláucia. O que une essas duas mulheres?
Na coletiva de Imprensa da novela Bom Sucesso, me perguntaram em quem eu me inspirava para compor a Gláucia. Eu disse que era impossível pensar numa única figura, porque o que mais temos nesse país são mulheres maravilhosas e que, no meu trabalho, eu tento todos os dias trazer um pouco das características das mulheres que eu mais admiro. Entre tantas, eu citei a Marielle porque dela, sempre me interessou a força e a coragem. Sem dúvida foi essa a informação que ficou na cabeça dos jornalistas.
E o que as une a você?
Incondicionalmente ser mulher e negra no Brasil, a gratidão por ela ser quem é (porque ela estará entre nós para sempre). E depois vem a coisa de ela se colocar, de ter atitude e de nunca deixar que ninguém te diga o que você pode ou não fazer. Eu não deixo mesmo!
Bom Sucesso tem personagens homossexuais e um dos panos de fundo da trama é a literatura, o incentivo à cultura. Mesmo que isso não esteja tão na linha de frente, podemos dizer que é uma novela que toca em temas tabus?
Sem dúvida é um projeto corajoso. Agradeço todos os dias ao universo por estar em um produto tão diferenciado como é Bom sucesso. Eu vejo a literatura como a protagonista do folhetim, porque, além de termos uma editora de livros no coração da trama, a presença da literatura está nos nossos diálogos, em citações no texto, nas referências visuais e muitas vezes de maneira muito clara na cena propriamente dita. Quanto à questão da homossexualidade, destaco a forma natural com que o tema é tratado, exatamente como deve ser na vida.
A Prado Monteiro tem em seu quadro de funcionários personagens negros em posição de destaque e a questão racial não é o principal conflito deles. Vê isso como um avanço nas novelas?
Considero uma virada, um avanço sim, porque infelizmente a cor da pele ainda é determinante para uma boa oportunidade de trabalho. Nesse sentido a contribuição de Bom sucesso é indiscutível, porque estamos lá efetivamente. A Gláucia é a diretora comercial da editora, um cargo de alta confiança, temos as participações diárias com vários negros, além do braço direito da minha personagem, o Léo, que é interpretado pelo querido Antônio Carlos Bernardes, filho do saudoso Mussum. Vale lembrar que estamos falando de uma empresa chefiada pelo Alberto, personagem do Antonio Fagundes, um dos maiores ícones da televisão brasileira. Em se tratando de um país racista como o nosso isso diz muito.
Dá pra falar sério com leveza e bom humor, como tem sido feito em Bom Sucesso?
Está provado que dá, não só pela audiência histórica que estamos construindo em tão pouco tempo no ar, mas também pelo retorno que os atores têm nas ruas. A agressividade não pode ter mais espaço que o amor, a empatia, a escuta e o acolhimento. Esse sempre foi o papel da arte. O humor nem se fala ー esse é poderoso para entrar nos corações mais duros e nas mentes mais fechadas.
Além da novela, você está em Jungle pilot e em A revolta dos Malês. O que pode falar sobre esses trabalhos?
Muitas alegrias e aprendizado. Eu tenho muito amor pelo que faço e a certeza que estou certa nas minhas escolhas, só se confirmam com trabalhos como esses. Jungle pilot está no ar e é engraçado porque, mesmo sendo parte do projeto, me surpreendo a cada episódio quando sento para assistir. Dalva é um presente, é poderosa, é forte e é mulher do protagonista o que me faz avançar na questão da representatividade em papéis não estereotipados. Em Revolta dos Malês faço a minha primeira protagonista em séries, aí vocês sabem, protagonismo negro dá uma reportagem de folha inteira. (risos)
Em A revolta dos Malês você vive sua primeira protagonista na TV. A responsabilidade aumenta?
Muito, mas por outro lado são 19 anos esperando uma oportunidade dessas. Isso quer dizer que eu estava mais do que preparada. Talvez seja o trabalho mais crível, mais forte que fiz. E não por coincidência (até porque não acredito nisso), é uma escrava, uma guerreira pautada pelo amor. É muito forte!
Você está em A vida invisível, filme que poderá levar o Brasil ao Oscar. Como foi pra você receber essa notícia?
Não foi, ainda está sendo. É uma ficha que cai lentamente, aos poucos. Todos os dias me pego pensando nisso. Entendendo, sonhando e ao mesmo tempo firmando os pés no chão. Até porque antes do Oscar teve o Festival de Cannes e o que a gente viveu lá não é algo tão forte, que não vou me recuperar nunca, se Deus quiser. (risos) Na vida prática, esse projeto me torna melhor em todos os sentidos, trazendo mais visibilidade e credibilidade ao meu trabalho, mais oportunidades e uma super injeção de ânimo pra ir sem medo atrás do que eu quero. O céu é o limite.
Como é sua participação no filme?
Leila é amiga de Guida, personagem de Júlia Stockler, uma das protagonistas ao lado de Carol Duarte. Vou tentar ser breve para não dar spoiler. Essa amizade surge no momento mais difícil da vida de Guida e o que elas têm em comum é a personalidade, a força e a coragem, diante uma situação extremamente delicada, numa época em que a mulher era absurdamente oprimida e invisibilizada por uma sociedade machista e doente, como é praticamente até hoje.
Na cia Contemporânea Mulher de Palavra você pode falar de temas como o feminismo sem pudores. Por meio da arte, você acha que faz política? É possível unir as duas coisas sem parecer panfletário demais?
A Companhia Contemporânea Mulher de palavra existe pra isso e por isso. A proposta é a partir da observação do universo feminino, levar as questões da mulher para o palco, com o objetivo de entreter, ser um canal eficaz de informação e principalmente, oferecer a arte como ferramenta de reflexão, sobre o papel da mulher na vida e na sociedade. O meu maior desejo é valorizar e provocar pensamentos e ações positivas, que fortaleçam cada vez mais a trajetória e as conquistas femininas.