Personagens de Além da ilusão, Leopoldo e Lucinha precisam esconder quem realmente são para driblar o preconceito social
A década é 1940. Num Brasil teoricamente mais atrasado socialmente do que o de hoje, quando alguns direitos foram conquistados, personagens de Além da ilusão (novela de Alessandra Poggi exibida às 18h na Globo) precisam fingir ser o que não são por não terem a liberdade de exercer a própria identidade. Leopoldo Cintra (Michel Blois) é um homossexual que vive um romance fake com Arminda (Caroline Dallarosa) e Lucinha (Zu Vedovato), uma menina que finge ser menino para poder jogar futebol.
Na primeira novela de uma carreira de mais 15 dedicados à interpretação, Michel Blois aponta que há diferenças, claro, entre a década de 1940 e a de 2020, mas ressalta que “a sociedade continua severamente preconceituosa”.
“A sociedade já entendeu que gays existem, embora não aceite que você fuja muito do que é ‘normativo’, se negue a tratar uma pessoa trans pelo gênero que ela quer e resista a dar emprego e oportunidades…”, reflete o ator. Para ele, a população LGBTQIA+ conseguiu sair da invisibilidade, mas nem tanto assim. “Fala-se sobre, porém, não se age sobre”.
“Ainda somos ignorados por uma instituição fortíssima, que pauta comportamentos e pensamentos, que é a religião cristã. Ainda somos desamparados com leis específicas para a comunidade. Nossa identidade ainda é usada como chacota ou xingamento. Ainda nos matam por sermos o que somos”, desabafa. Um recado para o público seria se Alessandra Poggi, autora da novela, surpreendesse e reservasse a Leopoldo um final feliz ao lado de Plínio (Nikolas Antunes), por quem nutre uma paixão, ou de um outro homem.
O ator não esconde que adoraria esse desfecho, mesmo que não seja tão condizente com aquela época: “A ficção não tem que ser fiel a uma realidade, mas sim projetar discussões pertinentes à realidade dos personagens e reverberar na sociedade atual. A realidade do Leopoldo é que ele é milionário e o dinheiro sempre ditou as regras da sociedade heteronormativa ,então, por que não ditar da homossexual? A maioria naquela época escondia a sexualidade, mas sempre existiram as pessoas que pagaram para ver, que mudaram sua época. Leopoldo poderia ser um deles. Ficaria mais feliz vendo-o assim do que sucumbindo à opressão.”
Apesar de ser um drama, Além da ilusão usa o humor para tratar a questão levantada por Leopoldo como quando ele vê Inácio (Ricky Tavares) trocando de camisa. Mas não da caricatura. Para Michel, esse é um acerto.
“Humor é uma ótima ferramenta para introduzir o drama, gera empatia, o público tem mais vontade de acolher aqueles que os fazem rir. Na vida, eu procuro rir das minhas pequenas desgraças, e isso não quer dizer ser leviano com meus sentimentos, mas, sim, dar peso só ao que carece de peso. Há aprendizados que ficam melhores com humor. Então, sempre que na arte consigo misturar esses mundos, do drama e da comédia, isso me conforta”, explica.
Direitos iguais
O discurso de direitos iguais entre os gêneros ainda é uma discussão atual, contemporânea. Mesmo que tenha avançado para temas como salário e divisão de tarefas e não esteja mais tão centrada na questão de se a mulher pode ou não fazer uma atividade.
Em Além da ilusão, Lucinha (Zu Vedovato) adora futebol e quer jogar profissionalmente, um escândalo para a época. Determinada, a menina se torna Lúcio quando veste o uniforme e tem a bola nos pés. “Hoje em dia é muito difícil ver campos em que as mulheres são totalmente proibidas de atuar, mas ainda vemos situações em que elas não são valorizadas como deveriam. Acredito que a nossa luta não pode parar e que merecemos as mesmas condições que os homens, porque somos tão boas quanto eles”, afirma Zu.
A atriz costuma dizer que interpreta quase que dois personagens, por Lúcio ter características que Lucinha não pode ter, sob a pena de o disfarce ser descoberto, e vice-versa. “Fiz um estudo com a minha fonoaudióloga e professora de canto para chegar em uma voz mais grave para o Lúcio. Além do estudo do corpo que precisava pensar em sempre disfarçar o peito, por exemplo, quando vestia a roupa de jogador. O Lúcio é muito mais sério do que a Lucinha, por sempre estar em uma posição de perigo, considerando que poderia ser descoberto a qualquer momento”, conta Zu, que adorou enfrentar outro desafio: cortar o cabelo.
“Confesso que sempre fui muito apegada ao meu cabelo, mas estava com uma vontade de fazer alguma mudança. Por outro lado, me faltava coragem. A Lucinha me proporcionou isso. Precisei escurecer o meu cabelo, raspar as laterais e fazer o pezinho. Foi a primeira vez que fiz uma mudança tão radical para um personagem, mas estou muito feliz com o resultado e fico babando no meu raspado na lateral do cabelo”, garante, sem um pingo de arrependimento esbanjando segurança de ser quem ela quiser ser. Como deveria ser com todos nós.
Duas perguntas // Zu Vedovato
Você seria capaz de “virar” Lúcio para ir atrás de um sonho?
Com certeza! Eu sou uma mulher muito determinada e, quando se trata dos meus sonhos, eu não meço esforços para realizá-los, desde que não prejudique os outros, obviamente.
Jovens costumam falar gírias e terem uma linguagem quase que própria. Como foi incorporar essas características a uma adolescente da década de 1940?
Acredito que essa foi a maior dificuldade para a construção da personagem. Antes de aceitar fazer a Lucinha, eu estava em uma preparação de elenco de um outro projeto na qual abusava muito das gírias. Como forma de estudo, trouxe muito para a minha vida pessoal porque nunca tive esse costume. E, consequentemente, perdê-los depois, em um curto período de tempo, foi um desafio.