Hollywood traz a história do cinema por uma lente romantizada

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Produção da Netflix, Hollywood reúne time de astros para contar importante momento da Sétima arte. Enredo otimista e romântico atrapalha maior conexão com a realidade

Guerras, momentos políticos e mudanças sociais. A história humana foi fonte de grandes enredos para o entretenimento, e, de certa forma, a metalinguagem é também grande parte dessa indústria. A biografia do cinema já foi abordada por diversos ângulos — seja nas telinhas, ou nas telonas — e a mais nova aposta nesta vertente é a produção Hollywood, da Netflix.

A estreia da série deu-se no começo de maio e segue sob supervisão da lenda da TV norte-americana, o showrunner Ryan Murphy — ao lado do não menos importante Ian Brennan. A dupla já emplacou vários sucessos, como Glee, mas Hollywood provavelmente não será mais um exemplo de marca pop para Murphy.

A série tem um apelo cinematográfico — marca de Murphy, desde Nip/Tuck, em 2003, até a atual American horror story –, entretanto parece estar presa a uma conjuntura de eventos que a seguram na regularidade. Na sinopse original, a Netflix vende a produção como a ousadia de um grupo de cineastas que luta pelo sucesso e pela fama na “terra dos sonhos” logo no pós Segunda Guerra. Na prática, entretanto, a organização é um pouco menos evidente.

Cuidado, spoilers a seguir!

O piloto apresenta o que pensamos ser o protagonista, Jack (David Corenswet). O rapaz, que está prestes a ser pai (algo que é “resolvido” posteriormente), faz o mais perfeito tipo “all american boy”, com o sorriso encantador e porte atlético. Contudo, a beleza de Jack, como o roteiro faz questão de ressaltar, não é um passaporte garantido para o sucesso. Amargando fracassos, o rapaz se vê “obrigado” a entrar no time do dreamland, uma casa de gigolôs disfarçada de posto de gasolina sob o comando de Ernie (Dylan McDermott).

Para “fugir” dos programas com outros homens, Jack tem a ideia de convidar um “amigo” abertamente gay, Archie (Jeremy Pope), que também passa por dificuldades financeiras e acaba aceitando o novo emprego. Em um dos programas, Archie acaba conhecendo, e se apaixonando, por Rock (Jake Picking).

Crédito: Reprodução/Imdb (em imdb.com) – Ray, Archie, Jack e Rock

Todos esses personagens têm alguma ligação forte com o cinema. Enquanto Jack sonha em ser ator, Ernie foi um intérprete, que agora amarga o fracasso e o esquecimento. Archie sonha em ser um grande roteirista, algo dificultado pelo fato de ser negro e gay. Rock também sonha em ser um grande ator após a infância complicada no interior norte-americano.

Somado a esses, os episódios de Hollywood (sete no total) acrescentam ainda mais personagens. A começar por Ray (Darren Criss) — percebam como grande parte do elenco faz parte do “clube Murphy” de outras séries —, um jovem e sonhador diretor que deseja fazer uma estreia de arromba em Hollywood. Branco, hétero e bonito, Ray vive os privilégios da década de ouro da cidade (apesar de se sentir parte da minoria, graças a descendência filipina). Ray namora a talentosa Camille (Laura Harrier), uma atriz negra que frequentemente sofre limitações na carreira pela cor da pele, e apostará tudo para ser a protagonista do novo projeto do namorado.

Pelos estúdios do marido de Avis (Patti LuPone) — o homem machista sofre um infarto e deixa a mulher no comando da empresa —, Ray entra em contato com o roteiro que Archie escreveu sobre uma atriz que simplesmente não consegue o sucesso que Hollywood sempre prometeu e acaba cometendo suicídio no famoso letreiro. Peg, que depois virá Meg, é o projeto que reunirá todos os personagens da trama.

É importante citar ainda Henry (Jim Parsons), um agente completamente detestável que abusa sexualmente dos atores para emplacar grandes sucessos. O homem é o agente de Rock e trava uma batalha contra Ellen (Holland Taylor) e Dick (Joe Mantello) — dois executivos do estúdio — pela participação na produção do filme. Ainda há na narrativa Samara Weaving interpretando a jovem Claire, filha de Avis, que também sonha em ser atriz e disputará o protagonismo de Meg com Camille.

Crédito: Reprodução/Imdb (em imdb.com) – Henry é um dos personagens mais detestáveis da história

Muita gente, poucos episódios

Sim, é gente que não acaba mais, especialmente tendo em vista o pouco número de episódios totais — e quem assistir perceberá a presença de ainda outros personagens recorrentes. Mas isso não é algo feito de forma desleixada. Hollywood vai apresentando cada personagem ao longo de toda a trama (Henry, por exemplo, é muito importante, mas só aparece lá para a metade da história). No fim das contas, é como se cada personagem chegasse no momento certo para compor os “galhos” de Meg, e por mais que sejam muitos, seria um erro dizer que todos esses personagens sejam superficiais, ou mal aprofundados.

Contudo, a equação sofre duras penas. O grande número de personagens acaba tirando o protagonismo de Jack de forma brutal. Em determinados momentos, a história do homem parece ser apenas o de mais um figurante, especialmente com a chegada, e importância, de Henry. Essa “falta” de ligação com um protagonista deixa a série mais morna.

O protagonismo negro

A grande sinopse da série é lançar foco sobre um importante momento da história do cinema: o primeiro protagonismo de uma mulher negra em um grande filme comercial de Hollywood. A gana de Ellen e Dick em tentar mudar a história do cinema para algo mais diverso encontra a vontade de Avis em mudar o comando misógino que o marido empreendeu no cinema norte-americano. Os desafios não serão poucos, pelo contrário. Mas o time de Meg segue firme no dever de fazer um filme que pode mudar a história de Hollywood.

Dentro dessa biografia, as injustiças da “cidade dos sonhos” são retratadas por meio do abuso sexual que cada pessoa com poder exercia sobre os novatos. Em Hollywood, o roteiro aposta quase 100% nos abusos praticados a homens.

O “estilo Ryan Murphy” também é um trunfo de Hollywood. O roteiro rápido se transforma em tiradas bem divertidas e dinâmicas, ajudando a prender a atenção do público. Soma-se a isso as boas atuações, com destaque gigante a Jim Parson.

Detalhe importante

Mesmo que adaptados, alguns dos personagens vistos em na série de fato existiram em Hollywood. Henry e Rock, por exemplo, são reais (o segundo, inclusive, foi uma das primeiras grandes celebridades a morrer de Aids, ainda na década de 1980).

Crédito: Reprodução/Imdb (em imdb.com) – A conexão dos personagens com a realidade é ponto forte da produção

O ponto é saber dessas pequenas conexões com a realidade deixa Hollywood mais viva e interessante de se acompanhar (especialmente no último episódio, com a cerimônia do Oscar com trechos reais). O problema, entretanto, é que uma parte muito pequena do público tem conhecimento dessas “conexões”, e o roteiro simplesmente parece não se importar muito com isso.

Mais uma “Hollywood”

No final de Hollywood, o público acompanha um triunfo narrativo quase infantil. Meg não só é concluído, como vira um grande sucesso. E se nos episódios iniciais a promessa era de muita briga entre os personagens, o final entrega todo mundo se amando e sendo pessoas melhores. Camille ganha o Oscar de melhor atriz e vários outros colegas de elenco a acompanham. O fim da série deixa a promessa de uma Hollywood mais diversa e aberta.

Na prática, entretanto, isso beira a inverdade. Em mais de 80 anos de cinema, apenas uma mulher negra ganhou o Oscar de melhor atriz: Halle Berry, em 2002. Homens e mulheres homossexual ainda se escondem por medo de perderem papéis importantes. O movimento #MeToo, em pleno 2017, mostrou que os assédios não são apenas história. Esse “otimismo” em relação a Hollywood é algo que poderia ser melhor trabalhado.

A história do cinema já foi enredo para muitas produções, logo, o desafio de não ser “apenas mais uma” é maior ainda. Hollywood, no fim das contas, não consegue ultrapassar tal desafio. Tem momentos interessantes, mas ainda se encontra na média.

Ronayre Nunes

Jornalista formado pela Universidade de Brasília (UnB). No Correio Braziliense desde 2016. Entusiasta de entretenimento e ciências.

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