Nova produção da Netflix, Caçadoras de recompensas acerta ao misturar sexualidade e religião, mas tropeça com um cansativo procedural
Uma garota de 16 anos trocando uns amassos bem quentes com o namorado dentro do carro. Entre juras de amor e certo medo, a moça acaba “convencendo” o garoto a consumar a relação sexual usando nada mais, nada menos do que versículos bíblicos. A cena de abertura de Caçadoras de recompensas (Teenage bounty hunters, em título original) já deixa claro que a recém-chegada comédia teen da Netflix não é mais um caso de Sessão da tarde, pelo menos em parte.
A série criada por Kathleen Jordan — e com produção executiva de Jenji Kohan, responsável por Orange is the new black — parte de um princípio relativamente simples, mas com detalhes mais “adultos”. A história apresenta Blair (Anjelica Bette Fellini) e Sterling (Maddie Phillips), duas irmãs gêmeas que têm uma relação de grande proximidade. As jovens foram criadas dentro de uma casa conservadora e muito religiosa, típica da região Sul norte-americana.
Por uma “ironia do destino”, as irmãs acabam envolvidas em um esquema que recompensa financeiramente de ajudar a deter fugitivos da polícia. A atividade, que é mais “popular” nos Estados Unidos, acaba se tornando um segredos das duas — e causando muita confusão na vida particular das garotas.
Como não poderia deixar de ser, Blair e Sterling tem personalidades bem distintas. Enquanto a primeira faz a linha mais rebelde, a segunda é a mais “comportada” e “certinha”. Isso pelo menos em um primeiro momento. Um dos grandes acertos de Caçadoras de recompensas é mudar constantemente essa clássica dinâmica entre a irmã “boa” e a “ruim”.
Apesar das aparências, Blair e Sterling são duas garotas complexas, com personalidades que vão além do comum. A cena ousada no começo da série tem como protagonista a “boazinha” Sterling, sendo que Blair, na maioria das vezes, também é bem mais doce do que gostaria de ser.
Como todas as pessoas na adolescência, Blair e Sterling estão começando a descobrir vários novos aspectos da vida, como a sexualidade. Com uma pegada bem à lá Sex education, o tema sexo é um livro aberto na série, mas diferentemente da outra produção da Netflix, em Caçadoras de recompensas o assunto é constantemente contraposto à religião.
O trunfo da produção, entretanto, é usar essa contraposição não de uma forma dramática (ou didática), mas sim de uma forma cômica. Convencer o namorado a transar com passagens do livro que guia várias religiões mundo afora, ou debater a homossexualidade durante um trabalho de artes construindo símbolos bíblicos são exemplos de como a sexualidade e a religião funcionam bem dentro de Caçadoras de recompensas.
Se soma aos acertos da produção a relação (e a química) entre as irmãs. A história sabe dosar bem o nível de amizade e conflito entre as duas, o que melhora a representação da personalidade de cada uma. Vale ressaltar também a relação que ambas têm com Bowser (Kadeem Hardison), o chefe das duas no “negócio” de caçar por recompensa no melhor estilo “Charlie mal humorado” de As panteras. As tiradas cômicas entre o trio são eficazes e de fato engraçadas — melhor exemplo disso é homem ter salvo o contato de Blair no celular como “A de cabelo preto”.
No universo dos coadjuvantes, Caçadoras de recompensas também é competente. Desde April (Devon Hales), a “arquiinimiga” de Sterling, passando pelos pais das garotas até os namorados de Blair, todos têm um objetivo na história e saem de cena quando não são mais necessários.
Um procedural mal pensado
Mas nem tudo em Caçadoras de recompensas é louvável. A pior parte, definitivamente, é o procedural mal calculado que tenta promover ação para a série. O gênero (caracterizado pelo “caso do episódio”, que fez muito sucesso nos anos 1990, especialmente em séries policiais, ou judiciais, como Law & order) simplesmente não faz sentido dentro do contexto do streaming e se torna algo enfadonho durante toda a série.
Em cada episódio, Blair, Sterling e Bowser têm de correr atrás de um novo fugitivo da polícia. A série até tenta explicar o fato do trio funcionar por conta da “especialidade” de cada um (Bowser consegue achar os casos, Blair tem a inteligência para lidar com as prisões e Sterling consegue atirar bem), mas na prática, o procedural se traduz como um recurso para encher linguiça em cada episódio — e nem a grande caçada do último episódio consegue mudar essa impressão.
No fim das contas (e por mais irônico que possa parecer), Caçadoras de recompensas seria mais coesa se abandonasse toda a vertente de caçar recompensa e se concentrasse mais nos conflitos da adolescência das irmãs, a parte mais interessante da história. Importante lembrar que o final da primeira temporada apostou alto no segundo ano e deixou um gancho gigantesco. Uma boa chance (caso concretizada a renovação) para arredondar uma história que já tem importantes pontos positivos.