Em entrevista, a atriz A. Maia fala sobre Quanto mais vida, melhor! e sobre as conquistas de uma atriz trans viver um papel geralmente dado a mulheres cis
Imensa. É assim que a Morte (A. Maia) aparece para os protagonistas de Quanto mais vida, melhor! sempre que eles se metem em apuros. Na verdade, foi ela quem salvou Paula (Giovanna Antonelli), Flávia (Valentina Herszage), Guilherme (Mateus Solano) e Neném (Vladimir Brichta), dando a eles mais um ano de vida.
Imensa. Esse é o tamanho da responsabilidade que a atriz A. Maia carrega ao quebrar paradigmas por ser uma atriz transexual interpretando uma personagem cuja sexualidade não é uma questão. “É uma quebra de paradigmas. É genial que o diretor Allan Fiterman e o autor Mauro Wilson tenham escolhido esse caminho, pois quebra com alguns estigmas e faz a gente rever imagens do que já está bem consolidado. A morte, muitas vezes, foi representada de forma tétrica. Fazer esta personagem como uma mulher, jovem e bela, ressignifica alguns valores. Isso é importante em muitos sentidos”, afirma A.Maia, em entrevista ao Correio.
Embora Quanto mais vida, melhor! seja uma comédia leve, A. Maia comemora o fato de a presença dela proporcionar uma certa reflexão ao público. “Por muito tempo e, ainda nos dias atuais, o caminho de uma pessoa trans segue o da marginalização. Ainda existe muito preconceito, muito tabu, muita moralização e discriminação e tudo isso é violência com nossos corpos. Um papel desse, que não coloca à frente a questão de gênero, é necessário, justamente porque mostra o quanto estamos além”, explica a atriz. que se diz ainda mais desafiada porque Fernanda Montenegro e Patrícia Pillar foram nomes cogitados para o papel anteriormente.
Entrevista // A. Maia
Os quatro personagens recebem o prazo de um ano para mudar, pois um deles morrerá nesse tempo. O que você “consertaria” em um ano?
Difícil pensar nisso. Mas acredito que não tentaria consertar nada em especial, mas, sim, viver a vida da melhor maneira. Tentaria realizar os sonhos que me fossem possíveis, praticar o amor entre os meus, ficar mais próxima da minha mãe, dos amigos. Tentaria ser feliz ao máximo.
Acredita que sua presença em Quanto mais vida, melhor! pode ajudar a diminuir o preconceito?
Acredito que sim. Ajuda a quebrar estereótipos, que é a base de muitos preconceitos e o preconceito é a base de muitas violências. Muitos desses valores têm como representação a figura masculina, branca, hétero, cis. Tudo isso é invenção social, é conveniente. São valores construídos por grupos dominantes em sua imagem e semelhança. Mas estes estereótipos não representam a maioria. Os corpos, os gêneros, as crenças, as etnias são plurais e diversas. Entender isso e existir práticas mais inclusivas e de quebra de padrões é fundamental para uma sociedade menos preconceituosa e mais igualitária.
A morte é um personagem recorrente em filmes, novelas, espetáculos teatrais. Alguma interpretação serviu como uma inspiração maior para você?
Muitas vezes, vimos a Morte sendo representada de forma fúnebre, séria, macabra. Temos o exemplo da morte representada no clássico de Ingmar Bergman, O sétimo selo. Não fui por esse caminho. Tivemos muito cuidado em trazer uma Morte mais leve, mais lúdica. Tentamos representá-la quebrando estes estereótipos, e pensando que é uma novela das 19h, uma comédia romântica, e que a intenção é falar de vida na verdade. Acabei me inspirando em algumas vilãs da Disney, como a icônica Malévola, interpretada pela Angelina Jolie, e também em outras culturas, que encaram a morte mais como um rito de passagem do que como algo negativo, assim como alguns povos do Oriente e também a cultura nativa mexicana, com o Dia dos Mortos.
Em séries como Todxs nós, da HBO, essa ligação com a causa LGBTQIA é mais clara por causa da temática explorada no roteiro. Acha que esse tipo de série acaba levando a discussão apenas para um nicho, ao contrário de uma novela das 19h?
Sim. Uma novela das 19h, que é um horário nobre na TV, comunica em massa. A televisão é uma cultura de massa, com grande alcance popular. Os assuntos são levados pensando nisso. Nas séries em canais fechados você tem um público que vai escolher a programação, então você nichar e falar com mais abertura sobre certos temas, é direcionado. Por isso que levar algumas discussões, que antigamente eram consideradas um grande tabu, para o grande público representa muitas vitórias.
A trama tem outros personagens da comunidade LGBTQIA +, como a Chefe e a personagem da Nanny People. O caminho para a representatividade está sendo percorrido, mesmo que lentamente?
Sim, podemos ver alguns avanços. Hoje existem mais políticas e espaços de inclusão e discussão. Podemos ver artistas trans em novela, sem que sua sexualidade seja o foco. Trazer mais de uma artista trans para trama é um ganho. As disparidades ainda são grandes, mas precisamos sempre enaltecer os ganhos e lutar por mais avanços.
Vivemos uma época dicotômica que, ao mesmo tempo em que em alguns setores há mais representatividade e respeito às diferenças, em outros a sociedade parece mais odiosa, mais transfóbica ainda. Como vê essa questão? Sente-se mais segura hoje?
Vejo que hoje temos muitas janelas e muitos espaços de discussão. As opiniões estão mais escancaradas e públicas. À medida que vemos um levante e progressos, vemos também as reações, e o ódio. Parece-me que hoje temos alguns avanços nesse sentido, mas, justamente, num período em que o ódio às diferenças foi institucionalizado. Já me senti insegura em muitos momentos.
Antes de Quanto mais vida, melhor! você estava de mudança para Portugal. Essa mudança tem a ver com o preconceito e a violência no Brasil?
Morei em alguns países, e morei na Europa por um tempo. O Brasil é o lugar do mundo que mais mata pessoas trans. Amo meu país, mas, com esses índices, é impossível se sentir totalmente segura. Fora do país, a vida, em muitos níveis, acaba se tornando mais tranquila, mais fácil para trabalhar e para viver.