O realismo passional de Tremembé e o melodrama brutal de Os donos do jogo se encontram na devolução ao público do reflexo de um Brasil em que a violência se tornou linguagem, herança e espetáculo
Patrick Selvatti
Duas séries brasileiras originais que estrearam no streaming na semana passada estão dando o que falar: de um lado, a ficcional Os donos do jogo, na Netflix; do outro, Tremembé — A prisão dos famosos, na Prime Video.
Em meio ao episódio dramático ocorrido no Rio de Janeiro, em que a megaoperação das forças de segurança resultou na morte de mais de 120 pessoas, entre criminosos e policiais, ambas produções exploram não somente a frieza de dos indivíduos envolvidos com a bandidagem mas também a humanização dessas personas. Cada uma à sua maneira, tocam em um ponto nevrálgico da ficção brasileira contemporânea: a tênue fronteira entre o espetáculo da violência e sua dimensão humana.

Em Os donos do jogo, de Heitor Dhalia, quatro famílias poderosas estão dispostas a tudo para assumir o controle do jogo do bicho no Rio de Janeiro, mas, para isso, eles precisarão lidar com a rivalidade entre os próprios parentes. A série, que mergulha nos bastidores geracionais das quadrilhas, é protagonizada por André Lamoglia (Elite), Xamã, Juliana Paes, Giullia Buscaccio, Mel Maia e Chico Diaz, que puxam um grande elenco que traz, ainda, veteranos como Roberto Pirillo, Stepan Nercessian, Tuca Andrada, Adriano Garib e Bruno Mazzeo.
A produção segue a tradição das narrativas sobre o poder e a herança criminal, mas desloca o eixo da simples guerra entre quadrilhas para o campo simbólico das famílias, da lealdade e da decadência moral que atravessa gerações. Heitor Dhalia aposta em uma estética cinematográfica, de ritmo acelerado e fotografia sombria, que insere o público em uma atmosfera de luxo corrompido — onde o glamour das mansões e o cheiro do sangue convivem com naturalidade. A série se distancia do retrato documental e aposta no mito: o jogo do bicho como um império paralelo, regido por códigos próprios e sustentado por afetos distorcidos.
Já Tremembé narra a realidade vivida dentro da conhecida “prisão dos famosos”. Localizada no interior de São Paulo, a penitenciária recebeu a alcunha devido à longa lista de figuras notórias que passaram por suas celas. A rotina e o cotidiano de personalidades como Suzane von Richthofen (Marina Ruy Barbosa), Cristian (Kelner Macedo) e Daniel Cravinhos (Felipe Simas), Anna Carolina Jatobá (Bianca Comparato), Alexandre Nardoni (Lucas Oradovschi), Elize Matsunaga (Carol Garcia), Sandrão (Leticia Rodrigues) e Roger Abdelmassih (Anselmo Vasconcelos) são retratados na produção nacional. O grande destaque está na caracterização do elenco, que consegue reproduzir com um surpreendente realismo as fisionomias e nuances dos personagens da realidade.
A produção, inspirada na obra do jornalista Ulisses Campbell, parte da realidade e a manipula com precisão jornalística, quase como se o espectador folheasse um dossiê audiovisual. O mérito da série está justamente em seu equilíbrio entre o sensacionalismo inevitável — afinal, são crimes que marcaram o imaginário nacional — e o esforço por compreender o que resta do ser humano sob o peso da culpa e da notoriedade. O texto e a direção constroem um ambiente de clausura e exposição constante, em que cada personagem é observado e julgado o tempo todo, dentro e fora das grades.

É curioso notar como, em tempos de redes sociais e de vigilância coletiva, tanto o bicheiro de terno quanto o assassino condenado dividem o mesmo palco: o da curiosidade pública. Nesse sentido, as duas séries dialogam com o momento brasileiro não apenas por retratarem o crime, mas por evidenciarem a forma como o país o consome — entre a repulsa moral e o fascínio por figuras que desafiam o sistema.
O realismo passional de Tremembé e o melodrama brutal de Os donos do jogo se encontram, assim, em um ponto comum: o espelho. Cada produção, à sua maneira, devolve ao público o reflexo de um Brasil em que a violência se tornou linguagem, herança e espetáculo. O crime, aqui, não é apenas uma trama, mas o retrato de uma nação que ainda tenta decifrar os limites entre justiça, poder e redenção.

