Minissérie da MTV, ‘A menina sem qualidades’, estreou em 2013, e até hoje se constitui como importante aposta no mundo das produções seriadas do Brasil
Falar de séries, geralmente, é apontar para produções norte-americanas, francesas, australianas e inglesas. Com muito investimento, esses países se tornaram referências no mundo das séries, mercado que o Brasil tem conhecido apenas nos últimos anos. Apesar do pouco tempo nesse cenário, é um equívoco afirmar que boas produções de entretenimento em ficção não ocorrem em território brasileiro. Canais abertos, como a Rede Globo, estão cada vez mais apostando em séries. O texto de hoje vem celebrar uma das grandes produções seriadas que passou pela telinha tupiniquim: A menina sem qualidades, da MTV.
Bem, na verdade A menina sem qualidades é uma minissérie, de 12 episódios, que estreou no canal musical ainda em 2013 – foi a segunda grande produção seriada do canal (que apresentou em 2009, Descolados). A história foi baseada no livro alemão Spieltrieb (Brincadeira, em tradução livre), de Juli Zeh, e ganhou a mídia do país europeu ao traçar um retrato bem definido de uma geração sem muito controle de suas ações – e responsabilidades – que está a caminho de “dominar o mundo” (o livro ganhou uma versão para o cinema e o teatro). Na versão brasileira, a produção foi roteirizada por Felipe Hirsch (que também dirige), Renata Melo e Marcelo Backes.
O primeiro grande trunfo de A menina sem qualidades é conseguir uma adaptação fiel ao livro, um trabalho extremamente difícil, principalmente tendo em consideração as grandes diferenças culturais entre os dois países, mas falaremos disso com mais detalhes mais a frente. Por hora, é importante entender sobre o que se trata a série. O resumo é simples: A menina sem qualidades apresenta a história de Ana (Bianca Comparato), uma jovem de 16 anos extremamente inteligente, que está descobrindo os muitos “aspectos” que a vida adulta pressupõe. Em uma nova escola, Ana encontra o “perigoso” Alex (excelentemente bem interpretado por Rodrigo Pandolfo), um garoto que obtém prazer em subverter regras sociais e morais que são fundamentais à convivência em sociedade. Em uma espécie de devoção – toda filosoficamente justificada – pelo garoto, Ana decide entrar em um jogo em que tem de seduzir o professor de literatura, Tristán (Javier Drolas), um homem que sofreu muito ao ser torturado durante a ditadura argentina e está tentando reviver sua felicidade – uma tarefa, cada vez mais, complicada.
Talvez até mais que a própria Ana, Alex é um personagem-chave na trama. Originalmente, existe um questionamento muito rico no fato do garoto ser um imigrante na Alemanha (na versão da MTV existe esse aspecto também, mas não muito profundamente explorado), e ter suas próprias regras sociais tão subvertidas quanto as normas do país, dito, de primeiro mundo. É como se a ligação entre Alex e Ana se desse num contexto mundial, em que uma nova geração – independentemente de bases familiares, culturais e filosóficas – tem as regras do jogo, mesmo não tendo a menor ideia do que fazer com elas.
Essa é a maior virtude de A menina sem qualidades: conseguir refletir o quanto de poder os jovens podem ter, e, principalmente, o quanto a vontade e o prazer deles não verão muitos limites, desde que muito bem justificados. A chantagem dos dois com o Tristán é tristemente absurda, mas, ao mesmo tempo, ver o quanto o professor está ligado àquele contexto de “vitória” – que o atrai como um mosquito a labareda – é revigorante.
A versão brasileira também decidiu apostar um pouco mais nos fatores externos aos dois jovens e ao professor. Vimos o sofrimento que constrói a personalidade de Ana por meio da mãe afastada das responsabilidades maternas, do amor lésbico que a jovem não teve direito de constituir, da repentina morte do pai e da amizade confusa que ela tem com Olavo (um colega da escola). Por parte de Alex, a verdadeira tragédia de não conseguir se identificar com um aspecto cultural de origem e a conturbada relação familiar (que gera consequências em questionamentos religiosos e culturais) é a explicação escolhida para as ações moralmente erradas do jovem.
Óbvio que A menina sem qualidades não é perfeita. Por vezes, o roteiro se mostra pedante, e os diálogos – em busca de um respaldo filosófico (que é marca da produção) – podem ser confusos. Porém, a ousadia de propor uma história que vai além do entretenimento superficial e que, de fato, reflita o papel da nova geração no mundo – e seus sentimentos – é um verdadeiro refresco aos fãs de séries.
Ficou curioso? Dá uma olhada no piloto: