Bruno Sigrist vive Dedé, dono da boate Kiss, que faz de tudo para escapar do julgamento do incêndio que matou 242 pessoas
Interpretar um vilão daqueles mais terríveis parece ser divertido para muitos atores. Quase sempre é assim. Mas é quando essa pessoa não é apenas fruto da ficção, mas, sim, de uma adaptação ou de uma obra baseada num fato, como a série Todo dia a mesma noite (Netflix)?
A obra remonta o incêndio na boate Kiss, que deixou 242 mortos em janeiro de 2013, em Santa Maria (RS). Ao ator Bruno Sigrist coube o papel de Dedé, nome fictício do dono da boate que pegou fogo e onde foram encontradas várias irregularidades com alvará, segurança e outras coisas. Bruno conta que um dos maiores desafios de interpretar esse papel foi “virar a chave” e evitar ao máximo julgar as ações (ou falta de ações) de Dedé.
“Muitas das cenas do Dedé são baseadas em depoimentos reais, com trechos quase idênticos. Não dá para ficar nesse lugar de julgamento, senão a cena não acontece. A chave é entender a circunstância daquela pessoa, a lógica de pensamento dela naquele momento e embarcar. Mas confesso que no final da gravação de uma das cenas, precisei compartilhar em voz alta com a equipe: ‘Meu Deus, esse cara é inacreditável…’”, lembra o ator, que, para aliviar um pouco a mente muitas vezes foi correr na orla do Rio de janeiro, “com aquela vista linda que sempre ajuda.”
Todo dia a mesma noite acabou lançando luz sobre questões levantadas no julgamento dos acusados por terem sido os responsáveis pelo incêndio e sobre o fato de esse processo ainda se arrastar na Justiça brasileira. “Eu costumo dizer que o caso da Kiss ilustra o jeitinho brasileiro, tanto pelos fatores que levaram o incêndio a acontecer (reformas irregulares, espuma tóxica, superlotação, etc.) como por escancarar o quão falho é o sistema judiciário do país. É impressionante como um caso tão inquestionavelmente absurdo possa seguir tanto tempo sem solução por tudo esbarrar na tecnicidade de leis antigas. Acredito que a série esteja servindo para chacoalhar esse balde e pode, sim, ajudar a justiça a ser feita”, comenta Bruno.
Entrevista // Bruno Sigrist
Você se lembra do dia da tragédia de Santa Maria retratada na série? Como ela o marcou?
Dia 27 de janeiro é aniversário da minha mãe, então me lembro muito bem desse dia. Não tinha outra notícia na TV, foi um choque muito grande para o país. Acho que o que mais me impressionou foi que, ao longo do dia, o número de mortos foi aumentando e pensei ‘mas como assim? O fogo já não foi apagado?’. Foi quando entendemos que as pessoas morriam pela fumaça.
Você está prestes a voltar a encenar o clássico Longa jornada noite adentro, no Rio de Janeiro. Qual a importância de se trazer de volta um texto clássico como esse?
Os clássicos são clássicos porque atravessam gerações e sobrevivem ao tempo, pois falam sobre coisas que nunca morrem. Essa é uma obra autobiográfica, de um dos maiores dramaturgos da época dele ( Eugene O’Neill), que escancara o quanto pode uma família ser totalmente disfuncional e, ao mesmo tempo, cheia de amor. E falar de família nunca perde a atualidade. Não tem quem assista a essa peça sem refletir sobre a própria história e sem se identificar com pelo menos um dos personagens. Essa nova montagem propõe que o espectador testemunhe tudo que acontecendo numa espécie de “jaula”, de onde os personagens não conseguem escapar. É muito interessante!
O teatro brasileiro foi muito atingido pela pandemia. O que ficou para você, como ator, desse período?
Não só o brasileiro, mas o mundial. Com a diferença de que outros países tiveram programas robustos de auxílio a profissionais da área. Para mim, ficou mais claro como é essencial a arte na vida que levamos hoje. Como teríamos sobrevivido àquele período sem a arte para nos ajudar? Então, hoje tenho mais orgulho ainda da minha profissão e mais consciência do que nunca de quão necessária ela é. E tenho muito orgulho da capacidade que nós, artistas, temos de nos unirmos para nos reinventarmos e atravessarmos momentos turbulentos.
Você tem muitos musicais no currículo. Esse gênero sofreu mais por exigir mais gente em cena e uma estrutura maior?
Sim, a pandemia foi muito dura para quem trabalha em musicais. Existe toda uma variedade de profissionais que se especializaram especificamente nesse gênero e ficaram bastante desamparados. Muitos deixaram a área para trabalhar no audiovisual, por exemplo, e não voltaram mais. Agora, os musicais voltaram com tudo, principalmente com o restabelecimento da Lei Rouanet, que viabiliza tantos projetos que empregam uma verdadeira legião de profissionais.
Você tem muitos trabalhos no streaming. Não pensa em fazer novelas ou simplesmente não aconteceu ainda?
Não aconteceu ainda. Tenho muita vontade. Como bom brasileiro cresci assistindo a novelas. Mas confesso que fazer streaming é viciante! São projetos geralmente muito bem pensados, planejados com cuidado, com bons orçamentos e que são feitos com calma. Novela eu sei que tem um ritmo frenético de gravação. Mas… pensando bem, acho que eu curtiria muito isso! Sou bem viciado em trabalho, o famoso workaholic.