Sempre fui muito pudica em relação às necessidades fisiológicas do meu corpo. Sempre me envergonhei do funcionamento hidráulico e dos meus escapamentos internos. Mais vergonha ainda sempre me provocou aquilo que ele arremessa para o exterior. Talvez porque, desde criança, somos ensinados que todas as reações mais humanas, comum a todos nós, são também as mais instintivas, aquelas que mais nos aproximam dos bichos. Como o bicho-homem é metido a maior sabedor da natureza, fingimos não termos desagradáveis odores ou incontroláveis reações do organismo. É todo mundo cheiroso, limpo e comandante dos próprios órgãos.
Balela! A gente pode até saber como nosso intestino ou estômago vão reagir diante de uma situação de pressão. Ou como nossa cabeça ou nossa coluna vão reclamar do peso da vida. Também se pode prever quando a bexiga se descontrola ou quando é impossível silenciar ruídos vexatórios. Mas a verdade é que, se reconhecemos que nosso corpo responde às sensações e emoções, nunca vamos poder dizer com qual intensidade ele vai se comportar diante delas.
Antes que o leitor considere o tema de hoje escatológico em excesso, tenho uma boa justificativa para a escolha. Fui fisgada pela sinopse do livro Diário de um corpo, assinado pelo filósofo francês Daniel Pennac, considerado um dos escritores mais promissores daquele país. Fiquei curiosa quando disseram que ele contava a história de um senhor que tinha escrito um diário do funcionamento de seu corpo ao longo de toda sua vida.
Sim, ele deixou registrado todas as reações sentidas, literalmente na pele, desde os 13 anos, quando descobriu que o corpo dele tinha vida própria e esbravejava, reclamava ou agradecia por estímulos externos. No relato do personagem criado por Pennac, há muitos episódios que não são nada fictícios para todos os leitores: desde o arrepio causado por um cafuné até as secreções e excrementos que o mais poderoso dos homens elimina.
Comprei o livro semana passada e confesso que estou nas primeiras páginas da obra, mas posso dizer que o tema ocupou meu pensamento nos últimos dias. Comecei a debater em silêncio com meu próprio corpo e tentar entender o que ele quer me dizer aos sussurros. Às vezes, fala manso, outras vezes berra. Muitas vezes, porém, não escutamos. Emudecidas nossas emoções, é o corpo que grita sem nos dar chance de calá-lo. Então, entendi por que eu não pude controlar meu intestino arredio quando me meti a participar de uma sessão de tantra recentemente. Era meu corpo pedindo socorro, com medo da exposição que aquilo poderia ser. Superado o susto, sobrevivi às fantasias que rondam leigos, como eu, sobre o tema e minhas tripas se calaram.
Também compreendi por que sinto azia quando a chateação não cabe dentro de mim. A tristeza quer ir embora a qualquer custo e sem poder de pegá-la com as mãos e jogá-la no lixo, meu estômago tenta, literalmente, digeri-la e produz mais ácidos para acabar com a agonia. É quase uma tentativa de sobrevivência que me mata de dor.
Foi então que entendi porque, quando criança, reclamava de uma misteriosa “dor na barriga”. Meus pais me levaram a todas especialidades de médico. Eles me reviraram, mas nunca encontraram nada que justificasse o incômodo. Nem poderiam. A conversa era particular, entre mim e minha alma ansiosa, perfeccionista desde que me entendo por gente. A dor que eu sentia era a linguagem que ela encontrou para me pedir socorro ou para dizer: “Respire, tudo tem seu tempo” ou simplesmente “Relaxe, garota”.
E tem tantas falas veladas do corpo humano. E não as ouvimos, mas as sentimos. Se alguém ou alguma situação não me cai bem, certeza de sentir náuseas, ainda que não tenha comido algo que provocasse os rodopios internos. “Vomitar é ser virado do avesso como uma sacola”, definiu Pennac em seu livro. Sim, verter líquidos é uma tentativa escandalosa que expulsar o que nos faz mal: comida, pessoas, sentimentos, não importa.
Nosso corpo é, por vezes, quase histérico. Por isso, melhor não ignorá-lo sob a pena de automutilação. Arriscaria a dizer que capaz de um suicídio emocional. Minhas vísceras ainda não chegaram a tal grau de comiseração, mas já vi amigo ser internado depois de atacado, repentinamente, por uma bactéria que lhe provocou, aos 34 anos e sem antecedentes médicos, sintomas de um infarto. O exame mostrou uma fissura em seu coração, uma espécie de cicatriz causada pelo micro-organismo. Meu amigo, que estava sofrendo de amor não correspondido, logo entendeu o recado do órgão: ele estava, literalmente, partido.
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