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Paixão déjà-vu

Amor é coisa que me intriga. Minha razão não encontra explicação que justifique por que alguns esbarrões dados pela vida se transformam em grandes encontros. Mais inexplicável ainda é como alguns desencontros convergem para ponto em comum. Um dia, não importa quando, os enamorados estarão frente a frente novamente. Juntos, de mãos dadas, aos beijos. Esqueço o cérebro questionador e felicito-me com as histórias de happy end. Alguns diriam tratar-se de sorte ou de simples acaso. Outros arriscariam a existência de um destino, ditado por diretor soberano. Quem sabe, de fato, alguns enredos amorosos não estão escritos nas estrelas? Eu não me atreveria a ir tão longe. Acho apenas que algumas energias não se desgrudam e acabam se atraindo, ainda que rumos diferentes tentem afastá-las.

Não acredito em cupidos, mas ouvi uma história que dá até para desconfiar de seres alados disparando flechadas por aí. Uma senhora de 76 anos, solteira por toda a vida, vai finalmente se casar. Não é um amor qualquer. É afeição antiga, da juventude. Dir-se-ia que o encanto acabou quando ambos tinham pouca idade, por infortúnio de ele já ter trocado alianças com outro alguém. Mas o amor é traiçoeiro e não apaga certos nomes da memória. Ainda que a razão determine, o coração desobedece.

A senhora a que me refiro vai dividir a casa, e os próximos anos, com tal amor, (re) conhecido há mais de cinco décadas. Nunca mais se viram desde que as primeiras faíscas foram acendidas. Ele se casou. Ela não. Ele construiu a vida na mesma cidade em que cresceu. Ela se mudou de lá. Há poucos meses, porém, ela voltou por aquelas bandas para consolar uma amiga órfã de filho recém-falecido. O antigo amor logo soube da presença da forasteira especial e quis saber sobre ela. Ele ficou viúvo. Ela aparentemente continuava livre.

Da intimidade dessa nova conversa e do reencontro, nada se sabe, mas fato é que ela está de malas prontas. A senhora independente, que sempre viveu só e feliz nessa condição, está de mudança para uma fazenda em Mato Grosso. Vai se casar com apoio da família. Ela nunca teve filhos. Ele sim, do primeiro casamento. Conta-se à boca miúda, porém, que o noivo preferiu dizer para a prole que a paixão era recente e não uma guardada no peito desde tempos idos. Dá para entender. Supõe-se que não quer correr o risco de pensarem que o espaço da falecida era compartilhado no coração do velho amante.

Ângela é outra mulher que também preferiu não espalhar a felicidade de ter reencontrado um namorado da juventude, quando prestes a completar 69 anos. Tem medo de que sua alegria deixe ferido quem perdeu espaço nessa relação. Ele é divorciado. Ela viveu a dor de enterrar o marido. Quando o pai de seus filhos e companheiro de tantos projetos se foi, Ângela teve a certeza de que a experiência de amar tinha morrido com ele. Nunca imaginou reviver o amor, consequência de um acaso no supermercado. De costas, ouviu alguém chamar por seu nome. Ao virar o rosto, não podia acreditar que era o mesmo Marcos, o pretendente a casamento de quando tinha apenas 20 anos de idade.

Eram apaixonados naqueles anos, mas as brigas bobas da imaturidade fizeram com que o relacionamento não fosse adiante. Cinco anos depois, ele estava casado. Com outra pessoa, porém. Ela também subiu ao altar, no mesmo ano, com novo amor. E a vida seguiu. Só viu Marcos uma vez, em um restaurante, ao longo de todos esses anos, mas os amigos em comum sempre davam notícias dela para ele, que nunca se esqueceu da quase noiva.

Quando Ângela o reencontrou, a primeira impressão foi de que ele estava “acabado”, brinca. Mas a aparência dele, envelhecida pelo tempo não impediu que o coração dela disparasse como se o relógio tivesse parado. Trocaram telefones. Ela sem expectativas. Ele, cheio de esperanças. Retomaram a conversa, que seguia gostosa como na juventude.

O primeiro encontro foi rápido, no estacionamento do trabalho. Mas o cupido, o destino ou qualquer que seja o nome desse empurrãozinho que a vida dá veio forte, e não se desgrudaram mais. Do tropeço no mercado até hoje, já vai quase um ano. Eles começaram a namorar. Ela anda feliz. Ri quando conta a história. Riso leve de quem está apaixonada. Agradece a Deus pelo encontro, que considera presente dos céus. Acredita em destino, pois só isso explicaria uma relação tão afinada, mesmo depois de tanto tempo. Diz que amor do passado já se conhece, já fez o coração bater mais forte antes e segue com o mesmo poder. Também rejuvenesce. Ela acha que está mais bonita e tem certeza de que ele também. Perdeu a feição abatida e de tristeza do homem que fazia compras sozinho naquele dia.

Enquanto fala, ela recebe o telefonema de uma amiga. Não acredita no que ouve e gargalha. Uma outra bonitona, que também já passou dos 60 anos, anda toda serelepe porque um amor de 20 anos atrás lhe fez convite para sair. Ele teria confessado que manteve o contato dela guardado por seis meses, até encontrar coragem para demonstrar o interesse. Ângela apoiou. Acredita que o amor antigo renova a alegria a qualquer idade. “E eu nem precisei correr atrás da felicidade. Ela chegou até a mim.”

Flávia Duarte

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Flávia Duarte

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