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O Natal dos sem-papai noel

“Esse ano descobri que Papai Noel não existe, que é minha mãe quem compra o presente. E agora, ela está colocando a maior banca.” A conclusão de Clara, me faz soltar uma gargalhada. Me encanta o sotaque suave e arrastado da menina  que nasceu em Fortaleza. Mais engraçado ainda é como ela interpreta, a partir de agora, o troca-troca de presentes de Natal. Acabou a magia e tudo não passa de uma negociação com a própria mãe, que, esse ano, já avisou: sem Papai Noel bancando a despesa, as contas da família estão mais controladas e o presente será mais singelo. Clara tem 11 anos. Não sofreu com a descoberta. Mas eu sim. E muito.

Para a quase adolescente, ruim mesmo é ter de regatear o valor dos esperados desejos do fim de ano. Isso, sim, não tem a menor graça. Quando a mãe se passava por Papai Noel, nunca ousou manchar a imagem idealizada do Bom Velhinho. Com ele, não se negociava preços.

Meu incômodo, no entanto, é maior. Clara não entende, ainda, mas o mais triste do Natal sem Papai Noel é que com a “morte” dele acaba a verdadeira festa.  Com os anos, quando  tudo vira consumo apenas,  bate a saudade das crenças.

Por isso, quase  grito um “não, por favor, não faça isso”,  quando ouço, no mesmo dia, outra mãe dizer que queria  contar logo para a filha, de 7 anos, que essa coisa de velhinho trabalhador e  invasor de casas não passa de uma balela chata que os pais já estão sem paciência — e muitos sem dinheiro — de sustentar. Não interfiro, porém, apesar de defender a existência do personagem que só existe pelo aval da inocência infantil.

Aos 35 anos de idade, vejo o Natal apenas como uma agradável reunião de família. De magia mesmo, só restou a lembrança. Para mim, essa época era uma rotina excitante na sua previsibilidade. Já desenhava na mente a árvore gigantesca que minha avó montaria com bolas quebradiças e coloridas. Algumas, vi envelhecer.  A cada ano estavam mais arranhadas, mais desbotadas, lascadas nas pontas, mas, ainda assim, seguiam firmes nos galhos de arbusto seco ela tingia de prateado para fazer a árvore. Tinha de cor o texto da cartinha para o Papai Noel. Sempre fui muito generosa com ele e começava a conversa com o discurso de que, caso ele não tivesse dinheiro naquele ano, poderia me dar um presente mais barato e tal.

Inesquecível mesmo era  o ritual de entrega das lembranças. Nada de chaminés ou entradas triunfais de um tio que se encorajava a se vestir, literalmente, do personagem. Bastava o sono chegar na noite de 24 de dezembro e meus pais colocavam os pedidos atendidos debaixo da árvore. A gente adormecia só quando a ansiedade era vencida pelo cansaço. O corpo parecia programado a despertar na primeira hora de 25 de dezembro. Bastava abrir os olhos e ter a certeza de que os embrulhos estavam ali. Papai Noel não tinha decepcionado.

Por isso, lamento por Clara. Não pelo presente menos generoso que a realidade econômica lhe fará escolher, mas pelo fim da melhor parte do Natal. Sorte tem ainda Thomas e Melissa. Ele tem 6. Ela pouco mais de 2. Esse ano, os pais deram de presente um cruzeiro por Miami com destino final à Disney. Sonho para qualquer criança, é verdade, mas que não redimiria em nada o Papai Noel que não apareceria na noite de Natal. Para evitar frustrações, a mãe escreveu uma carta em nome dele. Com desenhos de Walt Disney, decorou o envelope e o papel. Em voz alta, leu o texto para os meninos. O Bom Velhinho, no discurso, elogiou os dois, aproveitou para puxar a orelha dos irmãos e confidenciou que o presente seria o inesquecível passeio. Divertida maneira  que ela tentou manter a brincadeira, o tempo que a idade dos filhos permitir. E isso não tem preço: é o verdadeiro presente de Natal.

Flávia Duarte

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Flávia Duarte

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