Quase tatus

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Por causa da minha pressa distraída, me vi, pela primeira vez na vida, impedida de exercer meu legítimo direito de entrar em minha própria casa. Troquei as bolas, troquei as chaves e pronto! Não podia mais abrir a porta. Pedi socorro ao porteiro. Munido de ferramentas diversas e muita boa vontade, ele bem que tentou me ajudar. Começou delicadamente, concentrado na missão de soltar a chave tetra emperrada, mas, logo, estava esmurrando a fechadura. Tive medo de ele derrubar a porta, o que até teria sido bom porque, assim, conseguiria entrar em casa. Ao mesmo tempo, porém, só imaginava o prejuízo e a confusão que seria caso isso acontecesse.

Moro no quinto andar e no primeiro piso já dava para ouvir a briga feia que ele travou com a fechadura. Apesar do auê no corredor do prédio, nenhum vizinho abriu a porta. Nem por curiosidade, menos ainda por solidariedade. Fiquei pensando o que teria acontecido se, ao invés de o funcionário do prédio, quem estivesse tentando derrubar minha porta fosse um bandido. Aliás, os marginais devem saber que podem provocar estardalhaço na casa alheia que não serão incomodados.

Mascarados pela falsa premissa de que “não querem invadir a privacidade alheia”, as pessoas estão cada vez mais preocupadas só com o próprio umbigo. Quem se importa com a algazarra e os murros na porta de quem mora a seu lado e você sequer sabe o nome? Problema é seu e não dele! Por trás da aparente discrição, na verdade, escondem a falta de preocupação com o outro. Não ligam a mínima se você está precisando de ajuda ou se alguém quer invadir a sua casa. Uma das minhas vizinhas nunca se dignou a me cumprimentar no elevador. Meu lado infantil emburrou também. Agora, finjo que não a vejo. Isso é problema dela e não meu!

Estamos todos nos transformando em tatu-bola, que, a qualquer incômodo ou ameaça, tem a capacidade de se transformar em uma bola e se esconder dentro da própria armadura. As pessoas estão se protegendo dentro de carapaças, com medo de sofrerem com a dor alheia ou de oferecerem solidariedade, como se carinho fosse bem finito, daqueles que acabam se você der demais. Mas é o contrário: amor e atenção, acredito, você recebe de sobra quanto mais entrega.

O mundo está cada vez mais regido pelo hedonismo, pela filosofia de que toda a realização humana está baseada no prazer individual. A ideia está sendo mal interpretada, porém, e estamos criando uma sociedade de tatus-humanos egoístas. Somos caramujos solitários dentro de nossas próprias conchas, mas com o discurso aparentemente bem resolvido de “que é muito feliz sozinho.” Estamos cada vez mais narcisistas. Gostamos de receber, mas estamos mesquinhos para dividir.

Todos os dias escuto que as pessoas fazem ioga, terapia, artes manuais e também artes marciais para cuidar de si mesmas, para se colocarem em primeiro lugar. Esse é o discurso vigente: vamos nos amar infinitamente porque ninguém mais fará isso por nós. Eu também estou no divã para aprender a não me preocupar em demasia o outro ou, ao menos, não mais do que comigo. O problema é que compartilho o discurso já clichê de Tom Jobim, de que “é impossível ser feliz sozinho.” Não consigo ser indiferente a quem tem dores, dúvidas, angústias e alegrias; diferentes ou iguais às minhas.

O segredo pode ser o equilíbrio. Uma saída pode ser matematizar os sentimentos. Decidi que só vou me doar a quem também pode me oferecer algo. Não é exatamente uma troca, mas também não pretendo virar Madre Teresa de Calcutá. Ninguém deve! Aliás, nunca tive vocação para santa, então, tenho feito minhas malas facilmente, batido a porta e abandonado, sem olhar para trás, amizades interesseiras, amores unilaterais. O autoconhecimento é resultado do relacionamento com o outro e não há relação solitária, só existe ser for uma parceria.

Meu egoísmo tem se restringido a limitar amizades egoístas, a diminuir a oferta de atenção para quem não se esforça em retribuir afeto. Mas, ainda não consegui me manter dentro de minha confortável concha quando a casa do vizinho estiver a ponto de ser destruída. Isso se define como a capacidade de se colocar no lugar do outro, de fazer o que gostaria que fizessem por você. Eu ainda abro a porta, seja por curiosidade ou por preocupação. Esse sentimento pode ser traduzido como empatia, uma palavrinha que, em pouco tempo, deixará de existir no dicionário por simples falta de uso.

 

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