Peço desculpas antecipadamente por voltar a esse assunto. Há quem entenda como excesso tristeza, um bocado de peso, quando o leve mundo da fantasia nos pede para manter a felicidade todas as horas do dia. Já fui acusada de autocomiseração, de carente de atenção ao dividir minha dor. Perdoe de antemão se você também pensa assim. A perda faz parte de mim, da pessoa que sou agora, por mais que tente superá-la cada vez que abro os olhos pela manhã. Todos os dias, há mais de 2 anos e meio, faço isso. Há momentos em que o sofrimento, a autopiedade (por que não posso ter pena de mim?) estão adormecidos, mas em outros, no entanto, não cabem dentro de mim e se espalham como lava de vulcão.
Sou jornalista. Meu trabalho é usar as palavras para contar histórias. É isso que tento fazer vez ou outra: encontrar substantivos e adjetivos que definam o sentimento de tornar-se viúva. Para alguns soam como exposição desnecessária, para mim, é uma forma de exorcismo. Não só eu escrevi sobre luto. Nos últimos meses, faz parte da minha mesa de cabeceira as histórias pessoais de quem sobreviveu à perda de um grande amor.
Julian Barnes escreveu “Altos voos e quedas livres”, em que fala da morte da esposa, vítima de um câncer. Eu li. Joan Didion é uma americana famosa que transformou em best seller “O ano do pensamento mágico”, em que conta o drama de ver o marido morrer, sentando à mesa do jantar por causa de um AVC. Eu li. O brasileiro Boris Fausto lançou “O brilho do bronze”, em que tenta descrever a sensação de enterrar a esposa, parceira de décadas. Tão afoita em encontrar meus iguais, que comprei o relato duas vezes. Me esqueci que já tinha, mas li só as primeiras páginas.
Entender o sentimento dessas pessoas, me faz sentir normal dentro da anormalidade que representa o período de luto e reconstrução da própria identidade. A viuvez tem particularidades que não pertencem a uma mãe que perde um filho ou a um filho que perde o pai. Longe de fazer, aqui, comparações. Mas, perder um companheiro é ter arrancado para sempre um pedaço dos seus planos de vida, que só existiam porque eram feitos a dois.
Não me comparo a qualquer escritor renomado, mas tem dias que meu coração se agita e pede para ser esvaziado. Contar minha história é uma forma de fazer isso. Não escrevo para ganhar a compaixão de ninguém. Aliás, não quero nada. E se não te interessa saber como alguém enfrenta essa ruptura irreversível, pare de ler por aqui.
Dessa vez, minha memória foi instigada pela história da irlandesa Amy Molloy. O livro dela estava em uma pilha de títulos duvidosos, descartados, ontem, por minha chefe, durante uma limpeza feng shui feita na sala dela. A capa é uma mulher na sombra, vestida com uma camisola de seda e uma das alças escorregando pelo braço. O nome da obra pessoal era nada sugestivo, ainda mais quando associado à ilustração: “Muito prazer, Amy”
O que me chamou a atenção, porém, foi a palavra REAL, que saltou no subtítulo: “Uma história real sobre amor, sexo e recomeço”. Apesar de não ter absolutamente nada a ver com Amy, nossas histórias se coincidem. Ao folhear o livro, descobri que era a narrativa de uma jornalista que ficou viúva aos 23 anos. O marido forte, lindo e surfista, perdeu a batalha para um agressivo tumor de pele que tinha se alastrado para o cérebro e tirado a vida dele em poucos meses. Ele tinha 36.
Como eu, ela precisava escrever e decidiu contar que, três meses depois de ganhar o cruel título de viúva, já tinha dormido com 27 caras. Queria dizer como retomou sua vida diante da fatalidade. Amy não se orgulha da vida bandida que assumiu após perder o amor que escolheu, mas interpreta o sexo, naquele momento, como a busca por algum tipo de prazer, de qualquer sensação que não fosse a dor de ver quem a gente ama morrer um pouco a cada dia. “Não percebi que era apenas a adrenalina que estava fazendo com que eu seguisse em frente. Todos fazemos o que é preciso para sobreviver.”
Não fiz o mesmo que ela fez, mas entendi perfeitamente o que quis dizer e o que buscava em tantas camas anônimas. Compreendi a necessidade que tinha de ser abraçada, beijada, de se sentir uma jovem com uma vida o mais perto da normalidade possível. Carregar um caixão, dentro uma bagagem acumulada em tão pouco tempo de vida, é pesado demais e ocupa um espaço exagerado, acreditem. Acompanhar alguém que sabe estar se despedindo da vida, te torna invisível. Durante meses, só o medo e o pavor te conduz. Você não é mais dona das suas escolhas e não há nada que você possa fazer. Você é simplesmente nada diante de decisões tão grandiosas: da medicina, do universo, de Deus. A prioridade não são seus sentimentos. E como seriam, se diante de você tem alguém amado morrendo?
Eu mesma, dois meses depois de ficar viúva, me vi em um roof top em Nova York, com um macacão de renda branco, decotado nas costas — um dos mais lindos que já usei, a ponto de ser parada por mulheres de todas as nacionalidades para ouvir elogios e saber onde eu o havia comprado — dançando freneticamente.
Não era alegria. Era vontade de agitar o corpo e de dizer a minha mente, a meus braços, a minhas pernas e a meu coração que eu ainda estava vida. Apesar de tudo. Meu corpo sentia a música. Eu dançava. Fui julgada por quem achava que eu estava feliz demais ao sorrir nas fotos postadas em redes sociais. Amy conta que também foi criticada ao namorar. “Esperam uma viúva em um pedestal”, ela disse. Sei o que ela sentiu. O sorriso nessa fase incomoda tanto quanto o choro. Aliás, a presença de uma viúva incomoda. Ela lembra aos outros que somos mortais e impotentes.
Há o desejo de quem está a sua volta de medir sua dor por seus atos. Ninguém conseguirá fazê-lo, porque nem você própria tem poder disso. Nem eu conseguia entender como comprava maquiagem na Times Square enquanto apareciam na minha cabeça flashes do meu marido no caixão. Desviar o pensamento para as cores, para o que era vivo e brilhante me fazia lembrar que eu estava viva. Apesar de tudo.
Reler o relato de Amy Molloy ontem me fez chorar. Meu estômago revirou. Perdi o sono. Vociferei impropérios ao destino. Maldisse meu azar de ter me apaixonado por um homem com um tumor maligno na cabeça. Amy viveu episódios que também enfrentei. Só as jovens viúvas os enfrentam. A viuvez é um clichê da maturidade. No meu caso, no dessa inglesa e no de tantas outras mulheres, porém, não é assim que a história foi escrita. Ela chegou bem mais cedo do que a obviedade da vida prometeu. Isso não nos faz coitadas, melhores, nem piores, mas nos faz cúmplices em sentimentos que só quem ganhou esse título nessa fase da vida consegue compreender. O resto das pessoas podem tentar, mas só alcançam ser solidárias ou julgadoras.
Em comum, eu e Amy vimos nossos lindos e fortes maridos serem derrotados pela crueldade do câncer. Ela falava do medo de dormir e ele passar mal; do pânico de como seria o dia da morte, quando os médicos disseram que o diagnóstico era incurável. Eu também tinha. Todos os dias eu lutava ao lado do meu marido por sua vida, mas dentro de mim também me preparava para quando ele partisse.
Amy se casou três semanas antes de o esposo morrer. Casada no cartório, adiei meu casamento religioso um mês antes de ele acontecer, assim que soubemos do diagnóstico fatal. Amy não conseguia olhar seu vestido de noiva depois da partida do marido porque lhe lembrava um dia feliz que nunca mais poderia ter. Eu nunca consegui buscar o meu na loja porque me lembraria o dia que eu nunca pude viver.
Amy praguejou a felicidade alheia, enquanto convivia com a desgraça. “Por que os outros pareciam caminhar em rosas e ela em espinhos?” Também me fiz essa pergunta inúmeras vezes desde a descoberta da doença. Até hoje, um ano e alguns meses após a morte dele, às vezes me faço. Odiava quem estava feliz demais. Como você pode estar tão bem, ser tão indiferente a minha dor? Não entendia. Não admitia.
O livro da jornalista inglesa me fez lembrar dos dias no hospital, de ver nossos companheiros perder a consciência. Ela conta que tem uma caixa com as coisas do marido guardadas, incluindo um celular com a voz dele gravada na caixa postal. Eu também tenho. Ela embalou uma camisa para que o cheiro não tivesse para onde fugir. Fiz o mesmo com a almofada na qual o meu marido cochilava no sofá e ainda tem o cheiro do suor dele. Tem dias, que ligo para o celular desligado só para ouvir a voz dele. Depois que vamos embora, além de momentos que são só nossos, essas são as pequenas coisas que ficam.
Por muito tempo, ela evitou olhar as fotos do marido. Eu, depois de todo esse tempo, ainda não olho com leveza. Ela tentou não pensar nos momentos bons que viveram juntos para que a saudade não fosse ainda mais dilacerante. Também usei essa tática, mas não há como deixar de lado a lembrança de uma vida dividida.
Amy se lembra da última noite do marido no hospital. Eu também. Como eu, ela tinha medo quando chegasse a hora do último suspiro. Eu tinha pavor, na verdade. Mas, como eu, ela descobriu que essa não seria a pior parte. Quando vem uma doença dessa, o maior sofrimento é vê-la levando embora, a cada dia, um pouquinho daquela pessoa pela qual nos apaixonamos e rouba tanto de nós que, quando chega o fim, já não a reconhecemos mais.
Ela conta a sensação de “soco no estômago” quando teve que atualizar a certidão de casamento e assumir legalmente que era viúva. Eu também não me esqueço da vontade de chorar ao ler que na minha descrição para o Estado que eu era “brasileira, 35 anos, jornalista e viúva”. Não era isso tinha planejado viver. Não com 34 anos.
Amy fala da pena que as pessoas sentem das viúvas com pouca idade. Eu e ela, porém, temos o coração partido por nossos mortos tão jovens. Eu e ela, até que nos provem o contrário, podemos refazer a nossas vidas. Eles, nunca mais. Desde que Amy escreveu o livro, lá se vão seis anos. Vi ontem pelo Instragram dela que se casou novamente e espera um bebê. Sabia que ela se refaria, assim que comecei a ler sua história. Assim como tenho certeza que refarei a minha. Estou viva! Apesar de tudo!
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Sou jovem (29 anos), mãe de uma menina de 5 anos e viúva há quase dois meses.
Meu esposo foi levado pelo câncer. Lutamos durante quase 4 anos, durantes os quais ele viveu muito bem. Entretanto, em sua primeira internação,quando apareceu um derrame pleural, ele entrou em um centro cirúrgico para fazer um procedimento paliativo e simples...mas não voltou.
Parece que fomos golpeados pelas costas.
Agradeço por compartilhar sua experiência. É muito importante ler sobre casos parecidos com o meu.