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Em dia de cinzas, queime os preconceitos

Sem o devaneio etílico, me mantinha sóbria naquele bloquinho da Asa Norte, me esquivando dos empurrões de quem já estava com a dosagem de animação calibrada pelo álcool. Movia meu corpo ao ritmo do axé, conhecido da minha adolescência, em passos automáticos. Era minha cabeça que funcionava diante daquela cena do carnaval de Brasília.
Mais atenta, eu estava aos foliões e à manifestação de alegria deles do que à minha própria entrega à música. Na minha frente, uma negra movia rapidamente, e com desenvoltura invejável, o quadril largo, que acomodava uma bunda avantajada. Lindo de ver o balanço daquele corpo que, suponho, seja pesado em outras tarefas rotineiras.
Outro homem, de silhueta desenhada pelo excesso de peso, dançava com lentidão, talvez pelo tamanho da barriga exagerada, mas não menos alegria, ao som das marchinhas carnavalescas. Imagino, e pode ser preconceito meu, que em outro ambiente ele não se sentiria tão à vontade.
Ali, só eu reparava nele, ainda assim com olhar de quem se encantava com o respeito às diferenças que o carnaval pode trazer. Da mesma maneira que me chamou a atenção outro dançarino, esse muito magrinho, completamente fora do ritmo, em passos curtinhos de quem não conseguia acompanhar o frenesi do samba. Quem se importava? A companheira dele parecia que não, e se deixava conduzir feliz, pela falta de talento do parceiro.
Não vi olhar de julgamento para os bêbados ou para as mulheres com pouca roupa. Ignoravam a senhora de shorts muito curtos e de pernas de carne flácida de fora, que balançavam quando ela, desajeitadamente, rebolava até o chão.
Só eu a observava, com o intuito de registrar na memória aquela cena. Ninguém mais se preocupava como ela demonstrava a alegria de estar ali. Do outro lado, um senhor e uma senhora com rugas e cabelos brancos, vestidos com a mesma blusa listrada, mostravam sintonia não só na fantasia improvisada. Eles sacudiam os corpos envelhecidos e encaixados, como só os que estão juntos há muito tempo conseguem se ajustar com tamanha perfeição.
Eu me perguntei se eles saíam sempre para dançar, se estariam sempre tão relaxados diante de tanta gente com menos idade. Não que eu ache nada de errado, mas essa permissividade, a coexistência harmônica entre gerações e ausência de críticas é algo que pouco se vê, infelizmente. E é uma das belezas dos dias de folia.
Vi casal de mesmo sexo se beijar sem vergonha, sem medo do olhar alheio. Até mesmo porque não havia olhar do outro direcionado aos que deixavam explícita qualquer que fosse o tipo de relação. Cada um estava mais preocupado com a própria necessidade de se permitir e de extravasar a alegria contida pelas regras de quando acaba o carnaval.
“No carnaval tudo pode”, escutei mais de uma vez e refleti: “por que não pode sempre?”. Não falo de exageros nocivos, exposições desnecessárias, mas por que não aproveitamos, hoje, a Quarta-feira de Cinzas, para queimar e enterrar comportamentos engessados, moldados por regras antiquadas, sejam as próprias, sejam as do outro.
Que cada um se vista como queira, que dance sempre o ano todo. Sem vergonha do corpo, dos trejeitos mesmo se forem sem jeito. Para os cristãos, a despedida da festa simboliza o momento de mudança de vida, de reflexão de como a existência humana é frágil e passageira. Sendo assim, mesmo que não compartilhe a mesma religião, pense que da vida só se leva o que se vive e tem prazo para acabar. Então, não perca tempo e escolha o que deseja ter na bagagem: beleza, alegria e liberdade de ser e de aceitar o outro.
Flávia Duarte

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Flávia Duarte

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