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“E quando a morte chegar?”

Nasci com medo da morte. Não da minha exatamente, mas da dos que me cercam e de quem amo profundamente. Minha maior neurose, desde muito criança, era perder meu pai. Aos 60 anos, diabético, sedentário e fumante, o defino, infelizmente, como uma bomba-relógio. A qualquer momento, o coração dele pode pedir socorro, decorrência de um estilo de vida nada saudável. Mas nunca imaginei que a morte levaria meu marido de 38 anos. Fiquei viúva aos 34. Em março próximo, completa um ano que convivo com essa condição e, pela primeira vez, tenho que aprender a aceitar o inexorável ônus de respirar: o luto.

Não fomos preparados para a despedida de um ser amado. Eu não fui. Você certamente também não é. Ou acha que é. Por isso, admiro a iniciativa de um grupo de amigos, órfãos de um alguém, que criaram uma plataforma digital para falar sobre o tema. O projeto Vamos falar sobre o luto? reúne pais, irmãos, maridos e esposas que enterraram os seus e se juntaram para abrir o coração na rede e contar como enfrentam a perda. Cada um tem seu próprio caminho e usa armas muito particulares para sobreviver a esse duro momento.

Quando uma pessoa que amamos morre,  parte da gente vai embora também. A ausência de quem se foi é a maior presença que você vai ter de aprender a lidar daí para a frente. Alguém, meses depois, me perguntou: “E aí, superou o luto?” Fui incapaz de responder. Não sei definir ainda o que é o luto. Reconheço apenas que é um período de bipolaridade emocional, de insegurança com o futuro, de desafio de reinventar a própria vida, de romper com crenças e se perguntar por que você tem o direito de ficar enquanto o outro se foi. Até mesmo a insana raiva de quem te deixou. Não consigo imaginar quanto tempo dura, mas me apego aos que já o enfrentaram isso e dizem que vai doer menos. Um dia.

Nos depoimentos apresentados pelo trabalho Vamos falar sobre o luto?, tem marido que brigou com Deus; mãe que se apegou aos amigos do filho; pai que se resigna com a chance de ter convivido alguns anos com primogênito morto; moça que é acalentada ao ouvir da boca de outrem histórias do pai e assim manter viva a lembrança dele. A tese da iniciativa é que dividir a dor, a emoção e a superação ajuda e conforta e “torna a experiência menos triste e solitária”, defendem.

Para mim, difícil não é falar da morte depois que ela acontece. Falo do Luciano todos os dias, como se ele estivesse por aqui, como esteve ao meu lado por 16 anos. Conto histórias, imagino o que ele falaria ou pensaria em determinadas situações. Cruel mesmo é lidar com a morte quando ela espreita, quando é só um aviso. Não sei se o ser humano comum é capaz de lidar com isso com naturalidade.

O Luciano recebeu um diagnóstico incurável de câncer de cérebro. As estatísticas médicas, nesse caso, dão a chance de mais ou menos dois anos de vida ao paciente. O dia da notícia, foi quando começamos a elaborar nosso luto velado. Cada um com o coração dilacerado a seu modo. Em silêncio, em um pânico contido para não desesperar o outro. Havia esperança,de que ele fosse a exceção à impiedosa regra, mas eu e ele sabíamos que a morte estava anunciada, ao lado todo o tempo.

Não tivemos coragem de nos despedir literalmente. É uma tarefa muito dolorosa abrir a porta da sua casa para a morte e convidá-la a sentar-se no sofá de casa. Sua presença era sentida em todos os momentos, porém. Por mim e por ele, mas não pudemos falar dela. A despedida estava nas entrelinhas, como quando e deu um solitário de ouro com rubi. Sabia que, para ele, aquilo era um símbolo da sua presença para sempre. Eu entendi e só disse: “Não vou tirar nunca do dedo.” Sem maiores debates, ele me respondeu: “Eu espero que sim”.

Sabia que estava indo embora quando ele, com três tumores letais no cérebro, chorava e repetia seguidas vezes com pesar, olhando dentro dos meus olhos: “Coitada de você!” A generosidade dele foi tão grande que se esquecia da própria dor para pensar na que eu sentiria quando ele me deixasse. E ele me deixaria. Nos últimos meses de luta contra o câncer, já não falava mais e chorava todas as vezes em que o beijava. Eu chorava também, sem podermos dizer nada. Não sabíamos quanto tempo mais poderíamos tocar um no outro, sentir o cheiro um do outro ou ficar de mãos dadas.

Ele nunca disse adeus. Falar da morte era como se apressasse a, já anunciada, chegada dela. Mas ele se preocupou em apagar todos os dados de seu computador e do celular. Descobri depois de ele ter ido embora. Não teve coragem de me dar senhas de banco, de falar de dinheiro, de fazer qualquer sugestão sobre meu futuro, que, naquela ocasião, parecia mais longo do que o dele. Eu também me acovardei. Continuava pedindo que fosse mais forte que aquela doença que, nitidamente, tirava dele a autonomia, a memória e até as feições.

Até que chegou o dia que avisou que ia partir, mesmo sem poder falar nada por causa do cérebro que já estava comprometido. Pela mão, me conduziu ao banheiro. A dificuldade de andar não levou embora sua dignidade. Ali, me apontou a cadeira de rodas de banho, pronta para ser usada pela primeira vez, e balançou a cabeça em sinal de negação. Naquele momento, desde o dia do diagnóstico, um ano e meio antes, tive coragem de pegar na mão da morte: “Eu apoio você no que decidir. Não precisa mais passar por isso”, falei. E fui me deitar com ele na cama, de onde foi levado direto para o hospital, onde passou 18 dias, e nunca mais voltou.24

Flávia Duarte

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