A propósito da celebração do 1º de Maio, lembro-me que, desde que me entendo por gente, ouço a expressão “popular” no Brasil, e mundo (patriarcal) afora, de que e prostituição é “a profissão mais antiga” do planeta. Não é. Prostituição é uma das formas mais invasivas e cruéis de escravidão, imposta às mulheres e meninas. Antes de mais nada, porque não é profissão regulamentada, ou regida, pelas leis trabalhistas de quase nenhum país ou região, salvo poucas exceções. Além disso, a imensa maioria das mulheres (jovens, meninas, ou as maduras) que se prostituem o fazem por falta de alternativas ou porque são forçadas e/ou traficadas ao submundo da escravidão sexual e laboral.
A prostituição feminina bem como as redes de tráfico humano – também para a pornografia infantojuvenil (pedofilia), nas sociedades patriarcais, são consequências históricas de fatores como a pobreza ou miséria; a submissão das mulheres aos espaços privados, sem direito à educação formal; as melhores oportunidades e salários serem dados aos homens; o construto sociocultural da dependência econômica, moral e psicológica das mulheres; a repetição exacerbada, inclusive nas artes e nas literaturas, das representações sociais e estereotipias sobre a “fragilidade” feminina, física e moral; ou o fato de que a imensa maioria delas sofre abusos sexuais desde a infância.
Há dois níveis mais evidentes na situação da mulher, ou menina, em prostituição: a opressão de gênero e a opressão econômica. Duas lutas de classes, severos níveis de violência. Pouco ou nada difere o estupro da prostituição, exceto que um é pontuado pelo dinheiro. Entende-se estupro como violência sexual, mas prostituição como “liberdade de escolha” – liberdade dela de vender consentimento e dele de comprar um corpo humano para usar como objeto sexual. Essencialmente, o dinheiro compraria o consentimento. A escritora e pesquisadora norte-americana Andrea Dworkin, falecida em 2005, escreveu sobre esse mediador financeiro:
É sempre extraordinário entender, ao olhar para essa troca financeira, que na mente da maioria das pessoas o dinheiro é mais valioso que a mulher. Os dez dólares, trinta dólares, cinquenta dólares valem muito mais que a vida toda dela. O dinheiro é real, mais real do que ela é. Com dinheiro, ele pode comprar uma vida humana e apagar sua importância em cada aspecto de consciência civil e social e de consciência e sociedade das proteções da lei, de qualquer direito de cidadania, de qualquer conceito de dignidade humana e soberania humana. Por uns míseros dólares, qualquer homem pode fazer isso. Se você pensasse em uma maneira de punir mulheres por serem mulheres, a pobreza seria o suficiente. (…) Então, em diferentes culturas, as sociedades estão organizadas de forma diferente para obter o mesmo resultado: não só as mulheres são pobres, mas a única coisa de valor que uma mulher tem é a sua chamada sexualidade, que, junto a seu corpo, foi transformada em uma commodity vendável. A sua chamada sexualidade se torna a única coisa que importa; seu corpo se torna a única coisa que alguém quer comprar. Tradução livre do discurso original disponível em inglês na biblioteca: Prostitution and Male Supremacy
Há um forte discurso patriarcal, infelizmente elaborado tanto pela direita neoliberal como pelo campo progressista (à esquerda), que estabelece a prostituição como “escolha” e que seria dever de cada nação, ou Estado, assegurar essa “opção” laboral. Ora, a oposição à regulamentação da prostituição não tem absolutamente nada a ver com a escolha das mulheres.
A oposição de boa parte dos movimentos feministas luta contra uma indústria bilionária – na verdade, a que mais cresce ano após ano – que cria tendências de violência e degradação sobre corpos femininos para atender uma demanda masculina. E, ainda mais, com uma indústria que fomenta e perpetua um sistema patriarcal e capitalista por meio da sua própria essência de lucro.
O Escritório da ONU sobre Drogas e Crimes, o Unodc, em relatório de fins de 2016 sobre tráfico humano, revela que as crianças representam um terço das vítimas. Juntas, mulheres e meninas formam 71% das pessoas traficadas mundialmente e a maioria acaba sendo vítima de casamentos forçados ou de escravidão sexual. Por outro lado, homens e meninos são explorados para o trabalho forçado, principalmente para o setor de mineração, ou obrigados a atuarem como soldados ou escravos.
O tráfico para a remoção de órgãos é também uma realidade em muitos países. Em regiões como a África Subsaariana, a América Central e o Caribe, as crianças representam mais de 60% das vítimas de tráfico humano. O relatório do Unodc traz alguns dados sobre o Brasil, com números apresentados pelo governo. No ano de 2012, o país detectou 3.727 vítimas de tráfico humano e, em 2013, foram 2.659 vítimas, oficialmente registradas, de exploração sexual ou trabalho forçado. Ainda em 2013, as autoridades brasileiras condenaram 36 pessoas pelos crimes, além de sancionar lei de combate ao tráfico de pessoas no país.
Recordemos que pedofilia também é uma demanda. E o fato é que até 95% das mulheres em prostituição foram abusadas na infância, e que 75% estiveram sem um teto em algum momento da vida. Outros 70% afirmam que os abusos na infância influenciaram sua entrada no mercado do sexo. A idade média das (jovens) mulheres quando iniciam na prostituição é de 13 anos.
Por lei, no Brasil e em boa parte do Ocidente, uma menina de 13 anos não responde legalmente por si. Não é “liberdade de escolha”. Dizer que uma criança que saiu de casa pela miséria, por conflitos ou guerras, ou para fugir de abusos sexuais e ficou sem teto, em situação de extrema vulnerabilidade, escolheu se prostituir é culpar a vítima. Assim como as sociedades patriarcais estão acostumadas a culpar as mulheres pelos estupros e abusos sexuais, físicos, morais e psicológicos, que sofrem.
Defender essa “liberdade de escolha” para (jovens) mulheres ou meninas é basicamente defender a mercantilização da vida. Da mesma forma, é impossível ignorar que a prostituição é uma questão de classes, não só econômica, embora este seja um fator de peso, mas principalmente da classe masculina contra a feminina. Ainda no século 19, uma teórica do feminismo socialista francês, a escritora Flora Tristán (1803-1844), afirmou que “o homem mais oprimido pode oprimir um ser, que é a sua mulher. Ela é a proletária do próprio proletário”.
Romantizar a prostituição feminina é mesmo uma fábula. É exceção a esse doloroso universo marginal e límbico alguém fora da curva, como a falecida prostituta (de classe média) brasileira Gabriela Leite. Ela foi estudante de Ciências Sociais na USP e fundou a ONG Davida e também a grife de moda Daspu. Vítima de um câncer, em 2013, Gabriela foi ativista do movimento em defesa dos direitos das prostitutas, na Davida. Uma das principais batalhas que ajudou a vencer foi a inclusão, em 2002, da ocupação “trabalhador(a) do sexo” na Classificação Brasileira das Ocupações (CBO), para que as prostitutas pudessem se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como autônomas e garantir uma aposentadoria.
Para desconstruir fabulações machistas e misóginas “românticas”, há um exemplo do primeiro mundo. O estado de Nevada é o único lugar nos Estados Unidos onde os bordéis – prostíbulos – são legalizados. E tornou-se um Estado em que a prostituição tem sido considerada uma indústria de serviços “necessária”. Há pelo menos 20 bordéis em atividade na região. Não são muitos, em termos de quantidade, mas essas operações sancionadas pelo Estado superam seu peso em termos de “relações públicas”.
De acordo com a série de documentários da rede HBO, Cathouse (2005 até 2014), que na primeira temporada apresenta o mais famoso desses bordéis de Nevada, o Moonlight Bunny Ranch, a audiência é levada a pensar que todas as prostitutas de tais prostíbulos “legais” estão numa coisa boa. As mulheres falam timidamente sobre “amar seu trabalho” e seus clientes, ou seus chefes. “A série lança luz não apenas sobre as inúmeras alegrias e desafios de trabalhar em um bordel legal”, afirma o site da HBO, “mas sobre os benefícios terapêuticos que os clientes levam consigo depois de um período no rancho”.
Entretanto, a verdade veio à tona por meio do livro Prostituição e Tráfico em Nevada: Fazendo as Conexões (tradução livre), de 2007, no qual a autora Melissa Farley faz uma releitura desse “romance legalizado dos bordeis”. Durante sua investigação de dois anos, Melissa visitou oito bordéis de Nevada, e entrevistou 45 mulheres e um número de proprietários dos prostíbulos. Longe de desfrutar de melhores condições do que aquelas que trabalham ilegalmente, as prostitutas com quem ela conversou eram frequentemente submetidas a condições análogas à escravidão.
Descritos como “penitenciárias de vaginas”, segundo uma das prostitutas, os bordéis quase sempre ficam no meio do nada, fora da vista dos cidadãos e cidadãs comuns. Os bordéis são permitidos oficialmente apenas em municípios com menos de 400 mil habitantes. Na verdade, a prostituição continua sendo um “comércio ilegal” – embora vasto – em grandes centros urbanos como Las Vegas. As prostitutas dos que são legalizados costumam viver em condições de prisão, trancadas ou proibidas de sair.
“A aparência física desses edifícios é chocante”, afirma Melissa Farley. “Eles parecem grandes trailers com arame farpado ao redor – pequenas prisões”. Todos os quartos têm botões de pânico, mas muitas mulheres contaram haver sofrido abusos violentos, físicos e sexuais, dos clientes e também dos cafetões. A pesquisadora relata sua experiência em um dos prostíbulos:
“Eu vi uma porta de ferro em um bordel, por onde a comida das mulheres era empurrada através das barras de aço, entre a cozinha e a área do bordel. Um cafetão privou de comida uma mulher que ele considerava muito gorda. Ela conseguiu fazer um amigo fora do bordel, que jogava comida por cima da cerca para ela. (…) Outro cafetão era denunciado por muitas das mulheres que trabalhavam para ele. Muitas delas tinham histórias de abuso sexual e problemas mentais. O próprio cafetão contou que a maioria das mulheres foi abusada sexualmente quando crianças. Algumas são bipolares, algumas são esquizofrênicas.” Ver o livro aqui
E o pior de tudo é que ocorre com elas o mesmo que com boa parte das prostitutas em qualquer lugar do mundo: a discriminação em relação aos direitos humanos, como cidadãs. Em Nevada, elas perdem os direitos que as cidadãs “comuns” desfrutam. Desde 1987, as prostitutas de lá são legalmente obrigadas a fazer testes, uma vez por semana, para doenças sexualmente transmissíveis e, mensalmente, para o HIV. Os clientes não precisam ser testados.
As mulheres devem apresentar sua autorização médica à delegacia de polícia e ter as digitais impressas, mesmo que tal registro seja prejudicial. Nos EUA, se uma mulher é conhecida como prostituta, ela pode ter seu seguro de saúde recusado, sofrer discriminação em relação à moradia ou no futuro emprego, ou suportar acusações de maternidade imprópria (perder os direitos sobre filhos/as). Além disso, há países que não permitem que as prostitutas registradas se estabeleçam, de modo que sua mobilidade é severamente restringida.
Aliás, sobre restrição de mobilidade, prostituição ilegal e tráfico de mulheres e meninas, o Brasil está hoje entre os países onde as quadrilhas internacionais mais atuam. Há mais de uma década, a maior parte das mulheres que são levadas para Portugal vítimas do tráfico para a prostituição é formada por brasileiras.
Na década de 2001 a 2010, os números do tráfico de brasileiras foram motivo de estudo sobre o tráfico para exploração sexual realizado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Segundo os dados de Portugal, fornecidos pela Polícia Judiciária, pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, e por organizações não governamentais, cerca de 80% das vítimas de tráfico para a prostituição foram brasileiras.
Estudos semelhantes são realizados em vários países europeus, sendo que a Espanha também registra alto índice do tráfico humano de brasileiras. Na maioria dos casos, as mulheres são atraídas por falsas promessas de emprego e melhores condições de vida no exterior. A maioria delas tem histórico de pobreza ou miséria, nas periferias e favelas urbanas ou nas áreas rurais.
Na pesquisa da Universidade de Coimbra, foram identificados dois tipos de grupos que realizam o tráfico: o que trabalha com mulheres do Leste Europeu e outro que trabalha com as brasileiras. Os grupos da Europa Oriental são mais organizados e estão normalmente associados a outros tipos de crimes, como o tráfico de drogas, o tráfico de armas, e os de mão de obra escrava e lavagem de dinheiro.
O tráfico de mulheres é considerado um negócio atrativo por ter baixo risco e lucro máximo. Além disso, algumas mulheres são forçadas a pagar suas passagens para o exterior. Uma das características do tráfico, de acordo com o estudo, é o regime de endividamento, que leva à escravidão, o que ocorre tanto com brasileiras como com as do Leste Europeu. Os traficantes retiram os passaportes e os vistos e ameaçam entregar à polícia. Assim, elas vão acumulando dívidas, o que gera a situação de escravidão.
No Brasil, a falta de políticas públicas de segurança nacional contra o tráfico internacional de mulheres e meninas, além do alto desemprego e da pobreza, remetem também a outro dano colateral às brasileiras, de forma geral: o reforço do estereótipo já enraizado no imaginário mundial, por meio de décadas da publicidade e da propaganda nacionais, sobre o “despudor”, o “calor” e a nudez “fácil” das mulheres do Brasil. Na maioria dos países europeus, assim como nos Estados Unidos, já há um estereótipo negativo formado em relação às brasileiras.
A prostituição, a exploração sexual, significa, via de regra, desrespeito e infração aos direitos humanos. É opressão de gênero. É dominação patriarcal sobre os corpos de crianças e mulheres.
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