Quando o ser humano é mercadoria

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É estarrecedor o lucro com o tráfico de pessoas

O alerta vermelho precisa ser disparado para a população brasileira sobre o crescimento assustador de um crime para lá de hediondo que é o do tráfico humano. Especialmente, o mercado negro de crianças e mulheres (jovens) para duas finalidades principais: a prostituição (mercado sexual, pornográfico e pedófilo) e a venda de órgãos humanos. O tráfico de pessoas ocorre em níveis nacionais e internacionais, sendo que hoje o Brasil é uma das principais rotas para as quadrilhas organizadas.

Em todo o mundo, o tráfico de pessoas só perde para o tráfico de drogas e de armas, em termos da renda ganha pelos exploradores. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2014, apontam que os traficantes ganham US$ 32 bilhões com o tráfico de pessoas, sem contar o trabalho escravo, que produziria US$ 150 bilhões. No geral, esse mercado do submundo criminal produz algo em torno de US$ 180 bilhões, por ano.

Criança vítima da exploração do trabalho infantil escravo

O que causa estranhamento é a falta de campanhas governamentais que esclareçam a sociedade sobre o crime, principalmente, porque os órgãos de segurança – Ministério da Justiça, Polícia Federal, Ministério Público Federal, secretarias e polícias estaduais e municipais – estão plenamente cientes do aumento da atuação das quadrilhas no país, na última década. Basta fazer uma pesquisa rápida na internet para conhecer até as tabelas com os preços de órgãos humanos no mercado negro, onde comprar, ou como proceder. Tem até anúncio de venda de rim, membros do corpo, ou de “par de olhos” no Mercado Livre e outros sites. É de cair o queixo. Estarrecedor.

Entre os anos de 2016 e 2017, os casos notificados do tráfico de pessoas no Brasil chegaram a quase dois mil. Entretanto, os números reais são bem maiores e ocorrem diariamente, em todas as regiões do território nacional. De acordo com o Ministério da Justiça (MJ), o tráfico humano é um dos crimes subnotificados no país. Isso significa que é baixo o índice de denúncias feitas ao sistema de segurança pública ou a outros integrantes da rede de enfrentamento, como as ONGs.

Isso se deve, segundo o ministério, a fatores como a vergonha, o receio da vítima de ser discriminada ou incriminada, à falta de informação sobre como fazer denúncia, ou o medo de vingança por parte do agressor. O MJ destaca ainda que esse é um crime difícil de ser identificado. Por que, então, não são produzidas mais campanhas e reportagens sobre o assunto nas mídias nacionais?

Somente no ano passado, o governo promoveu o 1º Seminário Internacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes, no Rio de Janeiro. E só. Não se vê quase nada na imprensa ou mesmo as necessárias ações (políticas públicas) governamentais que alertem pais, mães, ou responsáveis por jovens, adolescentes e crianças, sobre a gravidade do problema.

O último relatório produzido no Brasil, publicado em 2016 pela extinta Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, contabilizou pelo serviço Ligue 180 um total de mulheres vítimas de tráfico de pessoas bem superior ao de homens, para fins de exploração sexual e trabalho escravo. Do total de 488 casos identificados pelo Ligue 180, para exploração sexual, 317 eram mulheres e cinco homens. Para o trabalho escravo, foram recebidas denúncias de 257 casos no período de 2014 a 2016, com predominância também de mulheres, 123 contra 52 homens.

Em termos de idade, a faixa etária compreendida entre 10 e 29 anos concentra cerca de 50% do total, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Pela Secretaria de Direitos Humanos, crianças e adolescentes são vítimas do tráfico de pessoas especialmente nas faixas etárias de 0 a 17 anos.

Em 2017, a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad) ressaltou a necessidade de dar continuidade às políticas de combate ao tráfico humano já existentes e também de identificar e acolher as vítimas, para que se evite a “revitimização”. O Ministério das Relações Exteriores não comenta sobre as políticas de enfrentamento ao crime, mas afirma que o número de vítimas deve ser muito maior que o divulgado porque, de modo geral, as pessoas somente recorrem à ajuda do governo em casos extremos. Em 2016, as repartições consulares brasileiras receberam 12 casos envolvendo tráfico humano na França, na Espanha, no Peru e na Guiana Francesa.

A SaferNet Brasil, que contabiliza denúncias de crimes praticados na internet, aponta aumento de 15% no volume de queixas contra o tráfico de pessoas, no último ano: de 1,3 mil para 1,5 mil, atribuídos a sites hospedados em 21 países. A ONG observa que 95% dessas denúncias referem-se a páginas que recrutam jovens para fins de exploração sexual. Esses números são baixos, pois crime não é difundido. Os dados reconhecem a exploração sexual ou trabalho escravo, mas o deslocamento que configura o tráfico acaba sendo subnotificado.

Homem teve um órgão retirado à força

O conceito de tráfico de pessoas é o deslocamento das vítimas para fins como o trabalho em condições análogas à escravidão, exploração sexual, extração de órgãos, adoção ilegal e qualquer tipo de servidão. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) considera essa uma das atividades criminais de mais rápido crescimento entre as organizações criminosas transnacionais. Um único caso pode envolver dezenas de vítimas. Fatores como a falta de recursos, a escassez de mão de obra e ainda a pouca divulgação do crime inviabilizam número maior de denúncias.

Segundo o UNODC, quase um terço do total das vítimas de tráfico de pessoas no mundo são meninos e meninas, de acordo com seu Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas 2016, lançado em dezembro de 2016. O Relatório estabelece que mulheres e meninas correspondem a 71% das vítimas do tráfico de pessoas, especialmente para fins de exploração sexual e trabalho forçado. Estas são as modalidades mais detectadas desse crime. “No entanto, existem também vítimas de tráfico para mendigar, para casamento forçado ou fraudulento, ou pornografia”, relata o diretor executivo do UNODC, Yury Fedotov.

O documento destaca que, enquanto mulheres e meninas tendem a ser vítimas de tráfico com fim de matrimônio ou exploração sexual, homens e meninos são traficados geralmente para o trabalho forçado na indústria de mineração, como carregadores, soldados e escravos. Além disso, 28% das vítimas de tráfico identificados em todo o mundo são  crianças. Mas, em regiões como a África Subsaariana e na América Central e no Caribe esta população compõe 62% e 64% das vítimas, respectivamente.

Fonte: UNODC

A ampla maioria das cerca de 5,8 mil vítimas notificadas na América do Sul são mulheres, segundo dados coletados entre 2012 e 2014. Enquanto a maioria das vítimas são mulheres adultas (45%), meninas também foram frequentemente detectadas. O número de casos de tráfico de crianças foi particularmente alto: cerca de 40% das vítimas identificadas durante o período do relatório.

Mais da metade (57%) das 4,5 mil vítimas de tráfico de pessoas foram recrutadas para fins de exploração sexual, durante o período. Além disso, cerca de um terço do total de vítimas foram traficadas para fins de trabalho forçado. O relatório destaca ainda que o Brasil relatou um número alto de vítimas, em torno de 3 mil por ano, para delitos como trabalho análogo à escravidão e servidão forçada.

O Ministério da Justiça e Segurança Pública coletou subsídios para a elaboração do 3º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, cuja implementação está prevista para o período entre 2018 e 2021. Segundo o Departamento de Políticas de Justiça, o grande problema é que o Brasil também está na rota do tráfico de pessoas. É sério isso, principalmente pela exploração sexual e de trabalho escravo, com foco nos estados do Nordeste, em especial, embora ocorra também nas regiões Sudeste e Sul. A Polícia Federal tem trabalhado nas fronteiras, entretanto, como ressalta o MJ, a sociedade brasileira precisa estar “antenada” para o crime de tráfico humano.

No DF, por exemplo, o sequestro, ou o aliciamento, de jovens ou de crianças para o tráfico com fins de exploração sexual, pedofilia, ou para a venda criminosa de órgãos humanos tem sido reportado em ocorrências policiais. No entanto, como não são confirmadas em investigações como tráfico humano, nem todas as notificações são registradas como tal. Em geral, as vítimas conhecem os criminosos, que podem ser pessoas próximas das famílias, parentes, ou conhecidas nas vizinhanças.

Fonte: Politize!

Um desses casos foi-me contado por uma conhecida, que reside em uma das cidades do Entorno de Brasília. No começo deste ano, uma vizinha sua viu a filha de quatro anos ser sequestrada, enquanto brincava na porta de casa, por criminosos ágeis, profissionais, que estavam em um carro que ninguém conseguiu identificar.

A mãe relata que a ação durou apenas alguns segundos. O carro parou, um homem saltou, pegou a criança e aceleraram. Até hoje, a menina não foi encontrada. Nenhuma pista. As probabilidades são de que tenha sido levada para outro estado ou país, caso seja para exploração pornográfica/pedofilia. Ou pode ser caso de tráfico de órgãos, cujas maiores vítimas também são as crianças.

A assistente social da Secretaria de Justiça do Distrito Federal Annie Vieira Carvalho explica que é a parcela já socialmente fragilizada a mais suscetível ao crime. “O tráfico de pessoas é uma consequência das políticas públicas, da falta do acesso básico da população aos serviços fundamentais”, ressalta. Segundo Annie, os aliciadores se aproximam das vítimas com propostas falsas de trabalho. Em muitos casos, após aceitarem a proposta, as vítimas têm seus documentos retidos e passam a ser alvo de ameaças.

“São propostas que exigem que as vítimas sejam deslocadas. Quando chegam ao destino, sofrem violações de direitos, nas suas diversas formas. As de maior índice são a exploração sexual, situação análoga à escravidão, e a remoção de órgãos. O ser humano é tratado como objeto que tem valor de compra e venda. É uma prisão sem grades”. Matéria publicada no site do Jornal do Brasil, em 28 de julho de 2017.

Veja aqui algumas orientações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a prevenção e a notificação dos crimes de tráfico de pessoas:

http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalho-escravo-e-trafico-de-pessoas/trafico-de-pessoas

Sandra Machado

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