Somente nestas últimas três décadas, o machismo doentio no Brasil, perpassado e perpetuado por todas as suas gerações, assassinou um total de mulheres equivalente ao dobro do número de soldados norte-americanos mortos em toda a Guerra do Vietnã. A violência misógina, de quem não ama nem gosta das mulheres, resultado de uma sociedade patriarcal conservadora, causou a morte de mais de 106 mil mulheres brasileiras, entre 1980 e 2013. Se calculado o aumento dos registros nesta década, com quase cinco mil casos anuais, os números batem mais de 132 mil feminicídios, no país, em menos de 40 anos. Sem contar os casos não inseridos nas estatísticas como crimes de ódio de gênero, porque parte da nação ainda é capaz de culpar as vítimas pelas atrocidades cometidas pelos homens.
Neste 7 de Agosto, a Lei Maria da Penha completa 12 anos. Apesar dessa lei, considerada pelas organizações internacionais e pela ONU entre as melhores do mundo para o combate à violência contra as mulheres e meninas, os dados brasileiros são desanimadores. Os registros das múltiplas violências contra as mulheres crescem exponencialmente, ao longo desses anos, também devido ao maior acesso aos meios de denúncias, como o serviço Ligue 180, mas principalmente desde a criação e regulamentação de leis e das primeiras delegacias especiais de atendimento à mulher (Deam), em meados dos anos 1980.
O Mapa da Violência de 2015 mostra que, entre 1980 e 2013, 106.093 mulheres morreram por sua condição de ser mulher. As negras são as maiores vítimas: na década entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no registro de mortes. Na maioria, são os próprios familiares (50,3%) ou parceiros/ex-parceiros (33,2%) os que cometem os assassinatos. Dado alarmante que reflete a realidade do Brasil, país com a quinta maior taxa de feminicídio do mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de assassinatos chega a 4,8 para cada grupo de 100 mil mulheres brasileiras. São entre 12 e 13 mulheres assassinadas por dia, sendo uma a cada 1h45 min.
Em todo o país, o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher) recebe um relato de violência contra as mulheres a cada 3 minutos e 50 segundos. Nos primeiros sete meses deste 2018, já foram enviadas quase 80 mil queixas de várias formas de agressões do machismo misógino brasileiro. A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência recebe denúncias com relatos de abuso sexual, feminicídio, cárcere privado e outros tipos de violência, como:
Crimes | Nº de casos |
Violência física | 37.396 |
Violência psicológica | 26.527 |
Violência sexual | 6.471 |
Violência moral | 3.710 |
Cárcere privado | 2.828 |
Violência patrimonial | 1.580 |
Homicídio | 994 |
Tráfico de pessoas | 109 |
Violência obstétrica | 43 |
Esporte assédio | 3 |
Fonte: Central de Atendimento à Mulher (2018)
Apenas no Distrito Federal, ocorreram três feminicídios brutais em menos de 48 horas. Um deles, nesta manhã, o policial militar Epaminondas Silva Santos, de 51 anos, assassinou a tiros a mulher Adriana Castro Rosa Santos, de 40 anos, mãe de duas crianças de 7 e 11 anos. Nos outros dois crimes, um morador da Asa Sul foi preso por suspeita de ter jogado a mulher da janela do apartamento, na segunda-feira. No domingo, um taxista matou a mulher na garagem de casa, no Recanto das Emas.
Em outros estados, houve registros de casos absolutamente estarrecedores. O que mais circulou nas redes sociais e na imprensa foi a brutal sessão de espancamento e consequente feminicídio contra a advogada Tatiane Spitzner, em Guarapuava, no Paraná, perpetrados pelo marido, o biólogo Luís Felipe Mainvailer. As câmeras de segurança do prédio onde ela morava registraram a maior parte das agressões. É de dar náuseas e uma angústia horrível assistir. É desumano e de ódio que beira mesmo a psicopatia.
As imagens de câmeras de segurança mostram que Luís Felipe agrediu Tatiane por mais de 20 minutos antes da morte dela e que a impediu de sair do local. Ele foi preso tentando fugir para o Paraguai. A perícia feita no local da morte constatou que Tatiane teve uma fratura no pescoço, característica de quem sofreu asfixiamento.
A jovem Andrea Araújo, de 28 anos, grávida de três meses, foi encontrada morta no domingo, em uma pequena cidade de Santa Catarina. Ela estava enrolada em um cobertor dentro do carro do marido, Marcelo Kroin, de 39 anos. Ele confessou o crime à Polícia Militar e foi preso. Kroin tem passagens criminais por violência doméstica e agressão. Segundo a família de Andrea, o casal morava junto há três anos e ela estava grávida, no terceiro mês, do companheiro.
São números e casos estarrecedores, que vêm crescendo, ao invés de diminuírem, o que seria a lógica, após a lei nº 11.340. O nome popular da Lei é referência ao caso emblemático da farmacêutica Maria da Penha Fernandes, que ficou paraplégica, tendo sobrevivido aos tiros e às agressões do marido, nos anos 1980. Sua história foi contada no filme Vidas Partidas (2016), produzido e protagonizado pela atriz Naura Schneider, e Domingos Montagner interpreta o marido.
Desde 2012, registro aqui no Blog da Igualdade (em sua primeira versão, reformulada em 2017) a violência machista, com altas doses de misoginia, e os absurdos índices de assassinatos, estupros, espancamentos, e demais formas de agressões morais e psicológicas, contra as mulheres. O Brasil figura há anos entre o 4º e o 5º lugar em feminicídios no mundo. É também o país “campeão” em estupros e outros abusos físicos, principalmente, contra jovens mulheres e meninas. O machismo daqui também carrega a anomalia pedófila.
É machopatia. Não há outra forma de definir. É mesmo uma mistura de absurdo machismo, fruto de gerações de cultura patriarcal escravocrata, racista e machista, com outras doenças psicológicas ou psiquiátricas. Psicopatas machistas e misóginos. Quando uma pessoa normal, sadia, vê as cenas dos vídeos gravados com o assassinato de Tatiane Spitzner, é difícil mesmo não desmoronar, pois sabemos que não é um filme de ficção e que ela vai morrer no final. E que morre de forma bárbara, jogada do 4º andar, após ser arrastada, estapeada, espancada repetidamente. Não dá para acreditar que um ser humano possa ser tão violento. Isso não é normal. Não é normal. Não naturalizem a violência. Parem de naturalizar a violência, em qualquer de suas formas, contra as mulheres.
A velha desculpa de “não se meter em briga de marido e mulher… ninguém mete a colher” é também machopatia. É ódio às mulheres. Pois interviriam caso ouvissem gritos de socorro de um homem, não? Não há intervenção porque sabem que quem está sendo vítima é a mulher. Deixam que as matem. Que apanhem, como “corretivo”. A advogada Tatiane apanhou, foi espancada, arrastada pela garagem, pelo estacionamento, pelo elevador, pelos corredores, tudo sendo filmado, com gente vendo e ouvindo os gritos, por 20 minutos! Ninguém fez nada. São cúmplices de assassinato. Não são apenas testemunhas. Também participaram da atrocidade.
Quando a polícia foi chamada, já era tarde. Matéria que saiu na BBC News Brasil ouviu a juíza Teresa Cristina Cabral Santana, integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar, do Poder Judiciário de São Paulo, para saber qual é o papel de vizinhos e do condomínio em casos desse tipo. Ela diz que é comum que não haja qualquer intervenção, mas que, quando há, ela dá resultados. “Intervenção pode salvar uma vida”, afirma a juíza.
A sociedade brasileira, tão apegada às suas piores, mais nefastas, tradições socioculturais e religiosas, aprendeu e passou adiante, desde sua colonização, a convicção de que as mulheres são posse e propriedade. Assim como os animais, podem “aprender” no laço, no cabresto ou nos troncos de açoite, relho ou chicote. Palavras que hoje voltam à “moda”, com os e as ruralistas e afins que assim afirmam dever ser tratadas/os os “serviçais”. Assim foi feito com as mulheres indígenas, estupradas, vilipendiadas, usadas como mão de obra escrava. Assim foi feito com as mulheres negras, traficadas das nações africanas para estas terras latino-americanas, tornadas escravas laborais e sexuais.
Assim, ensina-se por gerações a toda a gente, homens e mulheres, suposto pouco ou nenhum valor delas, do que seria uma “natureza fraca, servil e submissa do gênero feminino”. Seres que seriam apenas força de trabalho de segunda classe (nos âmbitos público e privado) e útero reprodutor de mão de obra barata ou escrava.
O Brasil é fruto da cultura do estupro, da exploração sexual e laboral das mulheres. Principalmente, das mulheres negras e das indígenas. As dos povos originários. As brancas tiveram a vida laboral (doméstica) um pouco amenizada pela (semi) escravidão das outras raças/etnias, mas sempre sofreram as violências múltiplas dos homens que as cercam. Violências que englobam também as desigualdades salariais, o desequilíbrio nas oportunidades de emprego, de educação, ou mesmo a apropriação de ideias e realizações delas pelos homens. Isso ocorre em todas as áreas.
O pior de todas as representações e estereotipias femininas que sobrevivem nesta sociedade é mesmo o fato de que as mulheres foram estimuladas à autodepreciação. Aprenderam a se culpar e a depreciar suas pares. E a competir e a menosprezar os laços entre elas. Isso é algo que já há algumas décadas, mundo afora, tem sido mudado a duras batalhas pelos movimentos feministas, pelos coletivos ou ONGs das mulheres, e pelos centros de pesquisa e estudos interdisciplinares sobre e pelas mulheres.
Quando ainda hoje escutamos algumas delas negarem os feminismos, ao dizer que não precisam ser feministas, que isso e aquilo não é necessário, não dá pra deixar de revirar os olhos e o estômago. Criaturas: em todo o mundo, nas últimas três, quatro ou cinco décadas, foram os movimentos feministas que garantiram às mulheres o direito a ingressarem nas escolas e nas universidades, nos mercados de trabalho, ou nos concursos públicos. Garantiram as promoções e as oportunidades em profissões competitivas e tradicionalmente “masculinas”.
Foram (e são) as feministas que conseguiram e conseguem tantas e tantas leis aprovadas pelos seus direitos políticos e civis – ao voto, a concorrer em eleições para cargos públicos, a participar de atos públicos. Sem contar a vida cotidiana, mais básica, como o direito de dirigir automóveis, de viajar, de sair do país – o elementar direito constitucional à liberdade de ir e vir, sem ter que pedir autorização ao marido, ao pai, ou a qualquer macho “responsável” pela mulher. No Brasil do século 20, acreditem, as mulheres ainda tinham que ter autorização para isso.
Até a Constituição de 1988 e além, com leis regulamentadas após 1990, ainda havia direitos absurdos outorgados aos maridos e outros homens da família, como o de poder internar as mulheres em sanatórios/hospícios, caso houvesse suspeita de “histeria” ou “anormalidades” comportamentais. Até fins do século passado, os homens sofriam pouca ou nenhuma punição por seus crimes contra as mulheres, que eram internadas ou mortas por qualquer coisa. Por engravidarem fora do casamento, por supostas traições ao marido, por serem “inadaptadas”. Ou seja, porque pensam que elas são propriedades ou posses. Que não têm livre-arbítrio. Que não podem escolher suas vidas, seus rumos, seu destino. Hoje, como vemos, a sociedade segue com seu ódio misógino, mas há leis. Todas batalhadas pelas feministas.
As mulheres feministas são tudo. São todas nós. São a força e a esperança para um futuro melhor, principalmente, em uma nação como esta, que ainda flerta com a era vitoriana, do século 19, tão ruim ou pior que a Idade Média nas questões de gênero, de classe e de raça/etnia. Basta. Né?
PS: Veja aqui o Mapa do Acolhimento, “Nenhuma Mulher Deve Sofrer Sozinha”, uma plataforma que conecta mulheres que sofrem violência a uma rede de terapeutas e advogadas dispostas a ajudá-las de forma voluntária. Indique para quem precisa!
https://www.mapadoacolhimento.org/
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