O Conto da Aia – The Handmaid’s Tale, livro da premiada escritora canadense Margaret Atwood, escrito em 1985 e transformado, em 2017, na série homônima de sucesso mundial pelo canal de streaming Hulu (já na 2ª temporada este ano), é uma distopia angustiante e, hoje, já não tão distante quanto desejaríamos. Nós mulheres feministas, ou qualquer pessoa que pertença às chamadas diversidades, temos que estar antenadas para este fato.
É questão de abrir um pouco mais os olhos e os ouvidos. Os sinais estão em toda parte. Em quase todo o mundo contemporâneo. Em muitas sociedades, especialmente nas mais atrasadas e conservadoras, como é o caso da brasileira, há uma acintosa contrarrevolução aos movimentos feministas e aos ativismos pelos direitos civis, políticos e humanos das pessoas LGBT, negras, indígenas (povos tradicionais e/ou nativos), imigrantes, ou mesmo contra os direitos recém-conquistados pelas pessoas portadoras de deficiência e pelas crianças, adolescentes ou as idosas.
Ao refletir sobre a Semana do Orgulho Gay (LGBTQI – lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e os que “questionam” o gênero), celebrado mundialmente no dia 28 de junho, não se pode deixar de pensar em todas as diversidades, em especial, na situação dramática das mulheres, estando ou não em contexto interseccional (sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação).
Ou seja, em nações ainda dominadas pelas tradições patriarcais do machismo misógino, brutal e dominador, e suas consequentes fobias às diversidades humanas, estão sendo reavivados, ou voltam a grassar, as violências e os assassinatos contra as mulheres e contra as chamadas “minorias” – que não o são nem quantitativamente nem qualitativamente no Brasil -, caso das mulheres ou pessoas negras ou indígenas, lésbicas, bissexuais, trans, imigrantes, refugiados/as, deficientes, idosas ou jovens e crianças. É massacrante.
As estatísticas estão claras e mostram que, a partir do momento que a nação passa a ser governada (e legislada) por conservadores (em sua maioria homens brancos, “religiosos”, das classes mais altas) que desclassificam os esforços e ativismos pelos direitos humanos e civis, a violência aumenta de forma assustadora. O Brasil é hoje o 5º país que mais mata as mulheres (feminicídios) e o que mais registra casos de estupros contra elas, majoritariamente se forem jovens (crianças e adolescentes) e negras (pretas e pardas), pobres ou periféricas. Registre-se que os estupros também ocorrem contra os meninos, mesmo que em menor escala.
Ocorrem entre 12 e 15 assassinatos de mulheres por dia, no país. E os estupros e abusos sexuais podem chegar a mais de 500 mil por ano, de acordo com estudos do IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. O mapeamento e as projeções desses casos são feitos com base nos dados do DATASUS (banco de dados do SUS), nos registros de ocorrências nas delegacias policiais, ou nos dados de outros sistemas de saúde e assistência social. Como a imensa maioria dos casos não é notificada, ou é subnotificada, o Instituto faz as projeções baseadas em cruzamentos dos dados disponíveis.
Segundo o Atlas da Violência 2017 do IPEA, os homens jovens continuam sendo as principais vítimas: mais de 92% dos homicídios acometem essa parcela da população. Entretanto, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas, os negros têm chances 23,5% maiores de serem assassinados em relação a brasileiros brancos (não negros), já descontado o efeito da idade, escolaridade, do sexo, estado civil e bairro de residência. Um agravante é que o racismo e o classismo institucionais entre as forças de segurança têm matado ou executado jovens negros/as tanto quanto durante os séculos de regime escravocrata no país.
Também cresceram em 30%, entre 2016 e 2017, os assassinatos e outras formas de violência contra as pessoas LGBT. Hoje, uma delas é morta a cada 19 horas no Brasil. São casos de terror, que mostram o mais irracional ódio, pois a violência dos assassinatos é chocante. Via de regra, espancamentos e apedrejamentos até a morte.
Há que se ter uma visão interseccional dessas violências e das perdas de direitos ora em curso nas sociedades globais, em especial nas menos desenvolvidas. Nestas, as desigualdades são ainda mais extremas. Os feminismos e os movimentos ativistas LGBT e pelos direitos dos povos tradicionais em nações latino-americanas ainda nem superaram pechas e fantasmas já um tanto obsoletos nas sociedades mais “civilizadas”, como as da Europa Ocidental, do Canadá ou mesmo nos Estados Unidos.
Vide as velhas maneiras, em grande parte coibidas nos países mais desenvolvidos, mas que ainda hoje são marteladas como estereótipos sociais no Brasil, como desqualificar mulheres ativistas como sendo mal amadas, incompetentes ou histéricas. Ou as formas de racismo e machismo que permeiam o mercado de trabalho, tanto em níveis de assédio (sexual, moral e psicológico), de contratação e ascensão, como em termos salariais. Não que as estereotipias e desigualdades estejam resolvidas no chamado primeiro mundo, mas os abismos são bem menores. E o respeito social e a participação política são bem maiores. Sem contar o mais importante: os índices de violência são muito inferiores. Não se compara a taxa de mortalidade (homicídios raciais, fóbicos e/ou feminicídios) de países da Europa ocidental com as do Brasil, por exemplo.
De qualquer forma, para se evitar um futuro nada promissor, ou ainda pior (que já bate às nossas portas), como o que é representado em The Handmaid’s Tale, precisamos – nós, mulheres feministas e dentre as diversidades interseccionais de gênero, raça e etnia, LGBT – sintonizar e manter-nos antenadas aos mais sutis dos assobios de cães raivosos, manipuladores, e na mais tenra e sebosa das campanhas que advogam por disciplinar e dominar a todas nós.
Estamos deixando passar vários discursos, atos e ações pessoais e políticas, por debaixo de nossas portas. Bem nos nossos narizes. Já dá para sentir a podridão e a repressão de um futuro distópico, neste país e em muitos outros. Quem acompanha a série do canal Hulu, que no Brasil passa no canal pago Paramount, ou já leu o livro visionário de Margaret Atwood, sabe que as coisas não acontecem de um dia para o outro. Não se acorda, do nada, de uma noite de sono, em um inferno chamado República de Gilead – um Estados Unidos repaginado por fundamentalistas religiosos, após uma guerra “santa”.
As políticas, públicas e pessoais, vão mudando passo a passo, em cada decisão, em cada nova lei aprovada em um parlamento de tradicionalistas retrógrados, ou nas rodas de conversas que invocam os “tempos bons de nossos avós” (que eram infernais para todas as diversidades, diga-se). Os hábitos, os desleixos e as resignações com as violências recorrentes de agentes públicos ou de companheiros, maridos, namorados vão se instalando. Inclusive, aquelas que remontam às tradições, do “sempre foi assim”. “É papel da mulher”. “É da raça deles”. “Homossexualidade não é de Deus”. Por aí vai. Até que a bomba explode. Até que uma mulher negra que está na política, uma mãe, um travesti do Ceará, um jovem estudante periférico do Complexo da Maré no Rio de Janeiro, um indígena ou um pequeno agricultor do Mato Grosso, ou milhares, milhões de negros, indígenas, refugiados, sejam exterminados. Já não acontece isso por aqui? Veja as estatísticas. É só buscar no Google.
Outro dia, li um artigo no Huffington Post sobre o livro escrito por uma norte-americana conservadora travestida de mulher “feminista”, Mona Charen, intitulado Sex Matters: How Modern Feminism Lost Touch with Science, Love, and Common Sense (em tradução livre, Sexo Importa: Como o Feminismo Moderno Perdeu a Mão com a Ciência, o Amor, e o Senso Comum), recém-lançado nos Estados Unidos. A entrevista dela para uma rede de televisão é uma aula de manipulação sobre auto proclamar-se uma mulher contemporânea, engajada, mas não, péra! “Estamos indo longe demais e perdemos a noção, o senso…” blá blá blá.
Na verdade, é uma inteligente figura conservadora que, como muitas mulheres criadas e submissas ao sistema patriarcal dos brancos, (neo)pentecostais, racistas, homofóbicos e misóginos, deseja ardentemente a regressão social e política à Era Vitoriana (referente à rainha Vitória, do Reino Unido), no século 19. Em suma, quando apesar de certo grau de modernização da ciência e na dinâmica econômica, a época foi marcada por rígidos costumes, moralismo social, proibições machistas comportamentais e sexuais, fundamentalismo religioso e exploração capitalista. Ou seja, ela repete em seu livro e nos repertórios, sucintamente, os mesmos discursos e projetos que hoje vemos em parlamentares, religiosos, e atores midiáticos brasileiros fundamentalistas das bancadas da Bíblia, da Bala (Segurança) e do Boi (ruralistas). O pior dos mundos.
Concordar com que tais discursos, ações, projetos ou programas continuem a dominar nossas sociedades, de forma crescente e sem crítica consistente, será caminharmos para algo como um matadouro, ou uma prisão, sem nenhum freio. Faço coro à análise do livro e do discurso de Charen feita por Noah Michelson, diretor editorial do Huffpost Personal, no citado artigo:
“Precisamos invocar pensamentos tóxicos como os de Charen sempre que nos deparamos com eles – em nossas TVs, em nossos smartphones, em nossas livrarias, em nossas igrejas ou quando ouvimos tais coisas na boca de familiares, amigos, vizinhos ou colegas de trabalho. Não fazê-lo permite que criem raízes, cresçam e eventualmente floresçam. O que pode parecer impensável um dia – como o aborto se tornar ilegal na América – pode acontecer rapidamente no dia seguinte, se “pessoas boas” se sentarem à toa, relaxarem, e permitirem que seu silêncio co-assine ideias perigosas, que logo se tornam leis perigosas, e têm consequências perigosas. As mulheres ainda não são tratadas totalmente iguais neste país. As mulheres ainda não estão totalmente liberadas neste país. As mulheres ainda não estão, em grande parte, seguras neste país. E não é porque eles passaram décadas lutando por seus direitos ou porque se recusam a ser modestas ou a se contorcer em uma ideia desatualizada de como deve ser um casamento ou uma família. Em última análise, não é o feminismo que nos falhou – somos nós que falhamos com o feminismo. Mas, ainda não acabou. Podemos não ser capazes de convencer pessoas como Charen a se unirem à nossa luta, mas, no mínimo, cabe a nós garantir que não deixemos que elas nos levem, num sonambulismo, em direção à República de Gilead.” There’s A Chilling New Call For Women To Reject Feminism. We Must Fight It At All Costs, publicado em 28/06/2018.
Cabe a nós, hoje, agora, botarmos a boca no trombone. Temos que refutar cada violência e invasão, moral ou física, e refletir sobre cada pedacinho de nossas vidas. Os e as haters (pessoas cheias de ódio e preconceitos) estão fazendo de tudo para que o Conto da Aia torne-se História.
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