Mulheres não são Incubadoras nem Mercadorias

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Notas sobre Religião, Cultura e Sociedade

Em meio à perplexidade, em tempos de retrocessos dos Direitos Humanos no Brasil – especialmente, em relação às mulheres, às pessoas LGBT e às populações pobres e periféricas-, tentar nominar ou justificar o inominável, o inexplicável, o injustificável, parece ser tarefa hercúlea. É pesaroso tentar debater, ser razoável e fazer sentido sobre as guinadas tresloucadas de parte da nação à (extrema) direita, aos fundamentalismos religiosos e às tradições socioculturais mais atrozes, machistas, racistas, fóbicas e desumanas.

Principalmente, por serem tradições baseadas em preconceitos irracionais e em discriminações históricas, centenárias, em um país que tanto necessita de políticas públicas voltadas às suas diversidades. São casos de saúde pública, de salvar vidas, de resgatar dignidade e esperanças. Sobretudo, de proporcionar condições para o desenvolvimento social e econômico, de forma sustentável e mais igualitária, ao país. Já está mais do que provado, via dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que quanto mais igualitária é a nação, melhores e maiores são sua economia e seus índices de desenvolvimento humano (IDH). É o que se verifica hoje nos países mais desenvolvidos do mundo.

O Brasil caminha no sentido inverso, ladeira abaixo. Exemplo esclarecedor das forças obscuras, do atraso e da brutalidade, que pairam sobre esta sociedade ocorreu nos últimos dias deste julho. A ameaça de morte e as agressões verbais e físicas, logo após uma palestra, contra a professora da faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), a antropóloga Debora Diniz. O caso foi tão sério que ela teve que denunciar as agressões publicamente, na imprensa e nas redes sociais, e registrou boletim de ocorrência na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), além de recorrer ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) para pedir inclusão no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH).

Dra. Debora Diniz: reconhecimento internacional e ameaças no Brasil. Foto: Arquivo

Ela é uma das principais pesquisadoras brasileiras em bioética e figurou entre as 100 personalidades globais de destaque, no ano de 2016, na conceituada revista norte-americana Foreign Policy. A publicação ressalta as pesquisas da professora brasileira sobre os efeitos do zika vírus e sua campanha em defesa do direito de mulheres com zika ao aborto legal, caso decidam interromper a gravidez. Debora é pesquisadora líder na Anis – Instituto de Bioética e integrante da Rede Nacional de Especialistas em Zika e Doenças Correlatas, do Ministério da Saúde. É autora, entre outros, de Zika – Do Sertão Nordestino à Ameaça Global (Civilização Brasileira).

Hoje, Debora Diniz tem que se esconder em seu próprio país. Está sob proteção do PPDDH e outras medidas de segurança são tomadas contra novos casos de violência, inclusive, nos meios digitais (redes sociais). Ela recebe o apoio de diversas organizações e coletivos dos direitos das mulheres, além de universidades e instituições de pesquisa. O mais dramático neste caso é que a professora da UnB insiste na luta pelos direitos humanos e no desenvolvimento da pesquisa nacional, quando poderia estar tranquila, segura, e com mais recursos em muitos centros avançados de pesquisa, nos países mais desenvolvidos. Convites não devem faltar a Debora Diniz.

Entretanto, a mediocridade e a ignorância atingem níveis absurdos no Brasil. As ameaças contra ela ocorrem desde o início dos anos 2000, mas se intensificaram e tornaram-se graves a partir de novembro de 2017. São agressões em diversos níveis, tanto pessoalmente quanto nas redes sociais, vindas de bandos extremistas, via de regra liderados por “pastores” e/ou políticos – os protofascistas, déspotas violentos e (neo) falsos profetas de apocalipses, que sequer participam de debates, não ouvem as justificativas, nem tampouco conhecem as implicações e os resultados das pesquisas científicas em torno de uma gama de temas e dos direitos das mulheres e diversidades.

Há anos a pressão é enorme, por parte desses mesmos personagens, pela aprovação de leis – no Congresso Nacional – absolutamente disparatadas, infundadas e retrógradas. São movimentos que visam minar os avanços sociais e culturais conquistados desde a Constituição de 1988, pela sociedade civil brasileira, a duras penas e longas batalhas. Caso não haja reação efetiva, serão retrocessos imperdoáveis para os direitos civis igualitários, fundamentais a todas e todos, independente de religião, orientação sexual, raça/etnia, gênero e idade.

São fundamentais os direitos humanos à liberdade de escolha, de livre arbítrio – “o que Deus nos deu, nenhum ser humano poderá tirar!” –, e de viver de acordo com as próprias convicções, sentidos, crenças, deveres e responsabilidades. Já não cabem tais cardumes ditatoriais, que mais parecem robôs acéfalos, e gritam e fazem barulho, com palavras de ordem contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo; contra a criminalização da homo/lesbo/transfobia; a favor da (semi)escravidão trabalhista; ou contra o aborto, mesmo nos casos há muito já pacificados pelas cortes superiores do país (estupro, risco de vida à mulher, anencefalia fetal).

Os protofascistas machistas, agora, intensificam os ataques contra Débora Diniz por ela ser uma das principais pesquisadoras a ser consultada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ação sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A Anis, organização não governamental liderada por Debora, é consultora do Partido Socialismo e Liberdade (PSol) na elaboração da ação. O tema entrou em pauta no STF desde o ano passado, e agora a Corte promove audiências públicas marcadas para os dias 3 e 6 de agosto.

Debora recebeu o convite da relatora do caso, ministra Rosa Weber, para participar dos debates. Desde então, passou a ser perseguida nas redes sociais e na UnB. Apesar das agressões, a ONG Anis garante que Debora está bem. A Anis considera as manifestações de intolerância e violência à professora como atentados contra a democracia, por impossibilitar o diálogo franco e qualificado sobre temáticas tão importantes para a vida das mulheres como a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos.

A ação do PSol argumenta que a criminalização viola direitos fundamentais da mulher previstos na Constituição de 1988, como o direito à dignidade, à cidadania e à vida. Isso porque milhares de mulheres, anualmente, colocam suas vidas em risco ao buscar a interrupção ilegal da gravidez. E há consequências graves devido à precariedade do procedimento, que resultam em mortes ou em complicações que terminam por sobrecarregar o sistema público de saúde. O cenário é ainda pior entre mulheres jovens, pobres e negras ou indígenas, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, de 2016.

De acordo com a pesquisa, conduzida pela Anis e pela UnB, foram entrevistadas mulheres de 18 a 39 anos, em 2016, e a conclusão foi que abortos são realizados com frequência entre mulheres de todas as classes sociais, raças, faixas de escolaridade e religiões. A pesquisa apontou que 20% das mulheres terão interrompido a gravidez voluntariamente ao menos uma vez até o final de sua vida reprodutiva. Em 2015, esse volume representou cerca de 416 mil mulheres nas áreas urbanas. No mesmo período, foram feitos apenas 1.667 abortos legais no país, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Isso equivale a 0,4% do total de procedimentos.

Em nota, a Anis registrou que “há tanto aborto no Brasil que é possível dizer que em praticamente todas as famílias do país alguém já fez um aborto – uma avó, tia, prima, mãe, irmã ou filha, ainda que em segredo”. A professora Debora Diniz publicou artigo no jornal The New York Times, em 2016, onde atesta que a epidemia de zika deu ao Brasil uma “oportunidade única de olhar para a desigualdade e os direitos reprodutivos”, e que o governo federal deveria imediatamente oferecer um pacote amplo de cuidados sexuais e reprodutivos.

Segundo ela, as mulheres “são muito parecidas – jovens, agricultoras rurais ou desempregadas, pouco escolarizadas, dependentes dos serviços de saúde e transporte para medicar precocemente seus filhos com múltiplos impedimentos corporais pelos efeitos do vírus zika”.

Pouco foi feito no país a respeito dos alertas da pesquisadora. O fardo é das mulheres. E é fato que, desde 2013, o Brasil passa por ondas de retrocessos incalculáveis para as políticas dos direitos humanos, para as mulheres principalmente, pois são elas os principais alvos das violências machistas, sexistas e misóginas. Naquele ano, as bancadas fundamentalistas da Câmara dos Deputados queriam aprovar, a ferro e a fogo, a proposta do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007). Só não conseguiram avançar devido aos esforços das organizações feministas, instituições de pesquisa e ensino, e das bancadas dos partidos de esquerda.

Entre outros absurdos inqualificáveis, o projeto previa que o Estado criasse uma espécie de “bolsa estupro” às mulheres que engravidassem devido a tal abuso, e ainda concedesse direito de paternidade ao estuprador. Ou seja, além de ser obrigada a gerar uma criança indesejada, tendo ou não condições psicossociais e físicas de criá-la, a mulher teria laços com seu agressor. Mãe e criança teriam que conhecer e até conviver com um estuprador. E se levarmos em consideração os gastos absurdos que a sociedade brasileira teria com o pagamento das “bolsas estupro” para sustentar cada filho/a de tal violência, até os 18 anos?

A inconsistência e a disparidade de tais projetos, vindos dessas bancadas extremistas e que formam o chamado “Centrão”, impressionam pela falta de senso e de lógica. Para quem não sabe, somente no ano de 2012, o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (Viva), do Ministério da Saúde, registrou um total de 18.007 casos de violência sexual contra mulheres no sistema público de saúde (SUS). Esse é o número de ocorrências registradas, já que muitas vítimas sequer conseguem atendimento, ou evitam as denúncias, por diversas razões. Os cálculos atuais, publicados em pesquisas do IPEA, projetam que a cada 15 segundos uma mulher ou menina é estuprada no Brasil.

Desapaixonadamente, imaginemos, pois, se o país tivesse que arcar – além do que já gasta com os cuidados às vítimas de abusos sexuais – com a gestação e os cuidados com as crianças geradas por essa extrema violência. Em suma, em todos os níveis, o projeto manda um sonoro “que se ferrem as mulheres”. Para quem apoia tais ações, as mulheres são seres de segunda classe, não mais que reprodutoras e incubadoras, garantidoras da “perpetuação” da espécie e de mão de obra barata.

Debora Diniz faz bem em se esconder do país que mais mata ambientalistas e defensores/as dos direitos humanos no mundo, especialmente, se forem mulheres. Os dados foram divulgados, na semana passada, pelo levantamento da ONG Global Witness. A ONG denuncia o assassinato de 57 ativistas e defensores de terras em 2017, sendo 80% deles na Amazônia. Apenas no primeiro semestre de 2018, já foram 66 assassinatos de defensores/as dos direitos humanos.

Assista

A audiência pública no Supremo Tribunal Federal sobre a descriminalização do aborto teve início na sexta-feira (3/8), e continua na segunda-feira (6), com a apresentação de 13 exposições pela manhã e outras 13 no período da tarde, com especialistas de instituições e organizações nacionais e internacionais – favoráveis e contrários à criminalização.

Na abertura, a professora da Faculdade de Direito da UnB, Débora Diniz chamou a atenção para os resultados da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016, que mostram que uma em cada cinco mulheres de até 40 anos já abortaram. “Se todas as mulheres que fizeram aborto estivessem na prisão, teríamos um contingente de 4,7 milhões de presas”.

Confira a exposição dela:

Sandra Machado

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