Entre Venezuela e Haiti, a vergonha é daqui

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O falso (neo)humanitarismo fascistoide do Brasil

O Brasil dos últimos dois anos tornou-se uma nação irreconhecível. Já a um passo do cenário de terra arrasada, e militarizada, o que é pior, com o fantasma dos anos de chumbo reencarnado em uma intervenção federal no estado do Rio de Janeiro. Intervenção esta anunciada de forma atropelada, com visíveis fins marqueteiros e sem planejamento algum. Não é nem pelo país estar sendo corroído pela corrupção a céu aberto, que nem se tenta mais disfarçar (vide o balcão de negócios vulgo Congresso Nacional), ou as privatizações consumadas “por decreto”, nas canetadas de um governo sem credibilidade, sem rumo e sem apoio dentro ou fora do país.

O interventor federal, general Walter Braga Netto, em entrevista coletiva na qual pouco respondeu à imprensa. Principalmente, deixou de lado a mídia internacional. Tampouco divulgou uma agenda com os planos do Exército para o RJ. Disse que a intervenção é basicamente um “trabalho de gestão”. Foto: Tânia Rêgo/AgenciaBrasil

Pior ainda, é terra arrasada pelo retorno do país, a pleno vapor, ao Mapa da Fome, e ao aumento da miséria, nos padrões da Organização das Nações Unidas (ONU). E por registrar recordes de desemprego, de desocupados/as por longos períodos, da estagnação prevista para 2018, e da volta da população mais necessitada à informalidade – ao viver de “bicos”, sem pagar impostos nem contribuir com a Previdência Social (que já deixa de arrecadar montantes expressivos).

Sobretudo, o Brasil é hoje um país assolado pela mais pura hipocrisia, arrogância fascistoide, e desfaçatez social. Mais do que nunca, está claro que não há preocupação alguma, em uma parcela significativa da sociedade, em relação aos direitos humanos, civis e políticos da imensa maioria de pobres e miseráveis – as classes D e E – e boa parte da classe C, que agora retornam ou afundam-se ainda mais nas periferias e favelas das cidades e capitais, ou às senzalas rurais. A Casa Grande solta fogos. Mesmo com o fato de que a Classe B – média e média alta – já não viaja com tanta folga a Miami ou a New York City.

O ápice dessa hipocrisia consolida-se nessa parcela social que quer mesmo é manter o status quo dos séculos e séculos de Brasil colônia, patriarcal, escravagista, preconceituoso, e que odeia as diversidades e suas populações mais pobres. A desfaçatez agora traduz-se na nova “moda”, entre quem vestiu verde e amarelo e coreografou dancinhas pela deposição de Dilma Rousseff e do “bolivariano” PT, de promover algo como crowdfunding – levantamento de fundos/recursos nas redes sociais – para apoiar movimentos da direita (como o MBL – Movimento Brasil Livre) daqui e de outros países latinos, tudo disfarçado sob a forma de “ajuda humanitária”.

É assim: certamente coordenados por especialistas, líderes de tais movimentos gravam vídeos, áudios e mensagens impressas com seus pares da (extrema) direita de países como a Venezuela ou a Bolívia – ou qualquer outro que tenha governos “socialistas/comunistas” – onde “denunciam” supostos horrores e misérias das populações refugiadas, que seriam vítimas de seus governos. Aí solicitam apoio, ajuda financeira, e que seus pedidos e denúncias sejam repassados aos contatos nas redes sociais e até em veículos da imprensa.

Já recebi vários desses vídeos e mensagens, em todas as redes onde mantenho perfil. Ou até por e-mail. Imagens e dados são assustadores. E claramente manipulados, engendrados de forma a convencer que tais nações estão a beira de um colapso, tanto financeiro ou econômico, como em níveis políticos e humanitários. E pronto. Voilá! “Temos que tirar o (Nicolás) Maduro! Abaixo o Evo Morales!” Que sejam golpeados todos os comunistas! Pouco importa se são governos eleitos, e mantidos, pela maioria da população. Menos ainda importa o fato de serem governos encurralados pela nova ordem “neoliberal” de sanções ou embargos econômicos norte-americanos contra os insurgentes “socialistas”.

A mentira “humanitária” desses fundamentalistas do neoliberalismo é de arrepiar o bom senso de qualquer pessoa. Nunca, jamais, preocuparam-se com os/as (semi) escravos/as que trabalham em suas casas, fazendas, indústrias ou empresas; ou com quem infringe as leis, nacionais e internacionais, ao forçar o Trabalho Infantil; ou com o tráfico humano de mulheres e crianças brasileiras, principalmente, para a escravidão sexual, além da servidão laboral. Este país, aliás, é “campeão” mundial nesses crimes infernais.

Tampouco preocupam-se com quem mendiga, miseravelmente, pelas ruas, bares, restaurantes, e bolsões de pobreza daqui mesmo, deste Brasil afundado na lama e já flertando com o militarismo irresponsável, sem planejamento ou alicerce. Jamais levantaram suas vozes contra os porões de tortura da ditadura militar ou, ainda hoje, contra as violências e abusos policiais contra cidadãos e cidadãs brasileiros. As polícias – militar, civil, e a federal – do Brasil são consideradas, notadamente, entre as mais violentas do globo.

Os membros da CNV, José Carlos Dias, José Paulo Cavalcanti, Maria Rita Kehl, Pedro Dallari, Paulo Sérgio Pinheiro e Rosa Cardoso, entregam o Relatório à presidenta Dilma Rousseff, em cerimônia realizada em 10 de dezembro de 2014, no Palácio do Planalto. Foto: Fabrício Faria|CNV

Nestes últimos dias, tais “humanitários/as” têm se sentido “seguros” enquanto soldados despreparados revistam, exclusivamente, pessoas pretas e pardas (inclusive, crianças) das comunidades periféricas do Rio de Janeiro. E as “ficham”, via celulares, com fotos de suas identidades. E seus comandantes, generais, demandam do governo uma espécie de “salvo-conduto” para que não haja, no futuro, alguma outra Comissão da Verdade sobre os abusos, torturas e assassinatos que eventualmente forem cometidos pelos militares. Algo inimaginável em qualquer democracia ou nação minimamente civilizada.

Tais “salvadores-de-refugiados-de-países-bolivarianos” tampouco tomam conhecimento sobre as denúncias de abusos sexuais cometidos por soldados brasileiros no Haiti, durante os anos em que serviram com as tropas humanitárias da ONU, após o grande terremoto de 2010 que arrasou aquele país. Segundo a agência internacional de notícias AP, mais de dois mil casos envolvendo forças de paz da ONU foram registrados pelo mundo e suas investigações internas revelam que as tropas brasileiras foram acusadas de abusos sexuais enquanto serviram no Haiti, chegando a oferecer alimentos em troca de sexo. A maioria das vítimas era de crianças e adolescentes.

Os (neo)preocupados/as com “refugiados venezuelanos” nunca deram a mínima para as pessoas refugiadas ou imigrantes que vieram para o Brasil, de países em situação de guerra ou conflitos, de catástrofes, ou de regiões extremamente pobres. É o caso gritante dos próprios haitianos, e de peruanos ou bolivianos, que acabaram tornando-se semi escravos e escravas de indústrias (principalmente, a têxtil), de empresas de médio e pequeno portes, e do agronegócio, em diversas regiões do país.

Militares ficham moradores/as na ocupação da Rocinha, uma das maiores favelas da América Latina. Fotos: Correio do Brasil.

Situação similar ocorre aqui também com relação aos povos do Oriente Médio, que fogem de conflitos sangrentos como a guerra civil na Síria que se arrasta desde 2011 e é considerada um dos grandes desastres humanitários das últimas décadas. Foi responsável por mais de 470 mil mortes, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos, e levou mais de 11 milhões de pessoas a deixar suas casas, tornando-se refugiadas.

Só a título de exemplo, em agosto de 2017, um desses refugiados sírios, que tentava sobreviver honestamente no Rio de Janeiro com a venda de salgados árabes em uma carrocinha, foi vítima de um ataque em Copacabana, na Zona Sul, região dominada pelos vestidos-de-verde-amarelo (padrão dos corruptos MBL e CBF), que estão “preocupados com a Venezuela”. Mohamed Ali, de 33 anos, que fazia esfirras e outros quitutes de sua terra, foi agredido verbalmente por um homem por causa do ponto de venda. Um vídeo da discussão foi publicado nas redes sociais e viralizou à época.

“Nas imagens é possível ver um homem com dois pedaços de madeira nas mãos gritando: ‘saia do meu país! Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homens-bombas que mataram, esquartejaram crianças, adolescentes. São miseráveis’. Adiante no vídeo, ele ainda fala: ‘Essa terra aqui é nossa. Não vai tomar nosso lugar não’. Os comerciantes chegam a derrubar a mercadoria de Mohamed no chão, que pergunta o motivo da agressão. Os homens, então, falam novamente para ele sair do Brasil. Mohamed está no Brasil há três anos e estava trabalhando na esquina da Avenida Nossa Senhora de Copacabana com a Rua Santa Clara, quando tudo aconteceu.(…)” Trecho de matéria do jornal O Globo, publicada no site G1, em 03/08/2017.

Em resumo, não, não é possível acreditar que tais movimentos “humanitários” da direita pouco (in)formada deste país são mesmo por nobres razões humanitárias. Não são. Nunca foram, em mais de 500 anos da História do Brasil. A maioria apenas serve um movimento bem orquestrado, das alianças econômicas neoliberais, com forte apelo populista. Uma cegueira do radicalismo nacionalista e de (falsas) supremacias hitleristas que assombram e se espraiam pelas Américas e também pela Europa. Os esforços visam claramente a ruptura com os governos socialistas, ou com as diretrizes sociais, políticas e econômicas de centro-esquerda, como é o caso no Brasil.

Agora, desde o término do que já é considerado o “mais político dos Carnavais” desde o fim da ditadura militar, durante o qual ficou bem cristalino que a correlação de forças e os ventos no país podem estar a favor  do campo progressista, a preocupação do ativismo pelos direitos humanos volta-se para os maltratados, sempre à margem das leis, “quilombos” urbanos. Mais especificamente para as favelas e periferias do Rio de Janeiro, onde as populações são majoritariamente, historicamente, formadas por pessoas pretas, pardas e pobres.

Em uma jogada política controversa destarte, o combalido governo Temer decretou a intervenção federal na segurança estadual do Rio. Mandou tropas do Exército para “proteger” as favelas e periferias na capital e nos principais municípios fluminenses. A intervenção militar de Michel Temer, aceita de pronto pelo forte governador Pezão, ambos do MDB, parece ter objetivos no reforço do caráter repressivo e violento do atual governo, ao destacar para a periferia do Rio militares para exercer função para a qual não têm treinamento específico.

Arrisca assim a população, que não será “protegida”, e a vida dos próprios membros dessas forças de segurança. A mentira está, ainda, na ideia de que quanto maior o contingente das forças, menor a violência. O contrário seria a aposta. É mais factível prever que, em uma intervenção de longa duração, os conflitos, confrontos, corrupção e guerrilhas serão uma constante entre o Exército, as Polícias, e os membros do tráfico (de drogas, de armas, ou de pessoas) e das milícias.

Serão 10 meses de intervenção, até o fim de dezembro. Ou seja, as eleições de outubro no Estado serão coordenadas e supervisionadas, na prática, pelo Exército, sob o comando do general Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste. Não é possível prever o que acontecerá no Rio de Janeiro. Muito menos dizer que a população fluminense estará segura.

Entretanto, parece ser a aposta do governo Temer para recuperar alguma credibilidade junto à população e influir de forma mais ativa nas eleições deste ano. Quiçá expandir a intervenção federal na “segurança” de outros estados. A prova de que Temer já cogita isso está em suas próprias palavras, no discurso que fez ao assinar o decreto:

“O crime organizado quase tomou conta do estado do Rio de Janeiro. É uma metástase que se espalha pelo país e ameaça a tranquilidade do nosso povo. Por isso acabamos de decretar neste momento a intervenção federal da área da segurança pública do Rio de Janeiro”, matéria do site G1, Política, 16/02/2018.

Ao comparar a situação do crime organizado no Rio de Janeiro com um câncer em metástase a “se espalhar” pelo Brasil, Temer já adianta o que pensa em fazer neste ano eleitoral. Provavelmente, a depender do desenrolar dos acontecimentos políticos e os sucessos (ou fracassos) dos militares no Rio, ele vai forçar um avanço intervencionista em outros estados que considerar “problemáticos”, tanto para sua imagem (de governo e pessoal), como para as eleições, que ainda são uma incógnita, mas tendem hoje às (centro) esquerdas, conforme todas as pesquisas eleitorais divulgadas este mês e também nas anteriores.

Entretanto, basicamente todas as boas práticas e respeito às leis constitucionais e às regras do jogo democrático têm implodido no Brasil pós-2016. Não dá para confiar que essas cordas dadas aos militares sejam tão somente para recuperar as rédeas da segurança pública em um Estado. A Caixa de Pandora aberta desde a destituição do governo Dilma Rousseff, sem provas de crimes de responsabilidade, em um processo político altamente questionável, reverbera suas consequências mais graves neste ano. Os fascistóides já estão empolgados com a possibilidade, mesmo que remota, de uma nova ditadura ou, no mínimo, que as forças intervencionistas interfiram no processo eleitoral.

O golpe de Estado de 2016, já reconhecido como tal mundo afora, também começa a ser entendido até pelos que o apoiaram aqui no país. É, sim, golpe. E, como ocorre nos terremotos, vêm em ondas os abalos sísmicos de várias intensidades. O fato é que o Brasil perdeu a sua credibilidade internacional e também aqui, no “mercado” interno. Hoje, tudo vale e tudo pode acontecer.

Desde o ano passado, a Fundação Konrad Adenauer, ligada à União Democrata-Cristã (CDU) da Alemanha, partido da chanceler Angela Merkel, divulgou um relatório em que afirma que o governo brasileiro perdeu a “credibilidade” e que “a imagem do Brasil se deteriora rapidamente”, ao descrever como uma “farsa” o julgamento do governo petista, vencedor das eleições em 2014.

Historiadora Juliette Dumont lança livro sobre as origens da diplomacia cultural de Brasil, Argentina e Chile. Foto: RFI

Vai mais longe a avaliação sobre a frágil democracia brasileira feita pela historiadora francesa Juliette Dumont. Ela estuda a América Latina, principalmente o Brasil, a Argentina e o Chile, e é professora de História do Instituto de Altos Estudos da América Latina (Iheal), na França, além de ser presidente da Associação para a Pesquisa sobre o Brasil na Europa (Arbre). Para ela, “o golpe (de 2016) afetou o poder de barganha e a voz do Brasil no exterior”.

“O golpe realmente abalou um pouco essa imagem muito positiva que havia sobre o país. O Brasil estava na moda e encarnava um modelo para as esquerdas da Europa. O golpe, e as imagens que circularam, por exemplo, da votação do impeachment da Dilma na Câmara dos Deputados, começaram a abalar essa imagem. Passou-se a se falar do Brasil só pela corrupção e a crise econômica. Isso afeta muito o poder de barganha do Brasil, a sua visibilidade e capacidade de ter uma voz nas instituições multilaterais (…). Trecho de matéria publicada pelo site da RFI Brasil, em 26/02/2018.

E a historiadora também está preocupada com o que acontecerá no Brasil em um contexto “de nostalgia da ditadura militar por uma parcela dos políticos e da população”. Para ela, é grave a decisão de Michel Temer de enviar o Exército para restabelecer a segurança no Rio de Janeiro. E concorda com acadêmicos/as brasileiros ao afirmar que, hoje, é impossível prever o desfecho da intervenção federal.

Não é sem razão, portanto, que cientistas políticos, historiadores/as e advogados/as estão elaborando cursos e seminários sobre a fragilidade das instituições democráticas brasileiras, neste atual contexto. A controvérsia acerca da disciplina sobre o “Golpe de 2016”, idealizada pelo professor Luis Felipe Miguel, titular do Instituto de Ciência Política (IPOL), da Universidade de Brasília (UnB), começa a se espalhar por várias universidades federais. A reação da Unicamp – a melhor universidade brasileira no ranking mundial – à tentativa de censura do governo de Michel Temer, via Ministério da Educação, foi disponibilizar imediatamente a disciplina para estudantes de Ciência Política.

E outras universidades elaboram cursos semelhantes para este semestre, como as federais da Bahia (UFBA), do Amazonas (UFAM), do Ceará (UFC) e de Sergipe (UFS). Na UFBA, a matéria está aberta também ao público, que poderá cursá-la como ouvintes; na UFAM, a disciplina será oferecida pelo Departamento de História, sob o tópico “O golpe de 2016: autoritarismo, perda de direitos e reação conservadora”. A USP e a UFRR também poderão oferecer disciplinas sobre o Brasil pós-golpe.

É oportuno, neste momento desnorteado do Brasil, fechar este artigo com a referência do professor César Augusto Bubolz Queiróz, do Departamento de História, da UFAM, ao historiador Eric Hobsbawm, da Universidade de Cambridge, falecido em 2012:

“Analisar de forma crítica a história recente do Brasil é sempre uma oportunidade de refletir sobre nosso presente. E, nesses tempos sombrios, é necessário repensar a importância da atuação do historiador em um momento em que as sombras do passado, fortalecidas pelas mentiras e omissões do presente, teimam em espreitar nossas janelas. Para (Eric) Hobsbawm, ‘é comum hoje governos e meios de comunicação inventarem um passado. […] É vital o historiador lutar contra a mentira. O historiador não pode inventar nada, e sim revelar o passado que controla o presente às ocultas’. É bom lembrar isso quando discursos autoritários que defendem a censura e as intervenções voltam a nos assombrar”. Trecho de matéria do site da Revista Forum, em 27/02/2017.

Sandra Machado

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