A revolução do futebol feminino no Peru que começou com uma comemoração

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O Minas Brasília se despede do Campeonato Brasileiro Feminino A1 2020 nesta quarta-feira (14/10), às 19h30, diante do Internacional no estádio Bezerrão (Gama), sem chances de avançar às quartas de final, mas com o alívio de ter se mantido na elite. A equipe que subiu para a primeira divisão com um elenco integralmente formado por atletas da cidade em 2018 ganhou o reforço da primeira estrangeira do time neste ano. E foi uma jogadora que já fez história. A peruana Steffani Ethel Otiniano Torres, 28 anos, pisou nos gramados da capital federal após ter sido o estopim de uma revolução no futebol feminino do Peru em 2019.

Steff, como é conhecida, é uma das jogadoras da seleção peruana com mais rodagem por clubes de fora do país de origem. Jogou no Brasil de 2014 a 2018, período em que defendeu as equipes paulistas Portuguesa, Taubaté e Embu das Artes. No ano passado, a atacante voltou para o Peru para jogar pelo Universitario de Deportes e viveu um dos momentos mais especiais da carreira ao ser convocada pela primeira vez para defender a seleção peruana nos Jogos Pan-Americanos de Lima-2019. Na primeira vez que a equipe feminina de futebol disputou a maior competição das Américas, Steff marcou dois gols em quatro jogos. Mas foi da arquibancada que veio a maior emoção.

Na estreia do Peru contra a Argentina, aproximadamente 22 mil torcedores acompanharam a partida no estádio San Marcos, em Lima. Um reconhecimento às jogadoras que pareciam invisíveis para o país que recebeu pela primeira vez um grande evento esportivo da magnitude dos Jogos Pan-Americanos.  Um mês depois, no retorno do Campeonato Nacional peruano, o silêncio voltou a preencher as arquibancadas nos jogos femininos. “A gente jogou com tanto público no Pan-Americano e, depois, foi um choque voltar no torneio nacional com os portões fechados para o público”, conta Steff.

Mas fora dos portões do estádio, o barulho era revolucionário. Ocorreram duas partidas em que os clubes chegaram a anunciar a venda de ingressos ao público, mas, em cima da hora, não permitiram a entrada sem dar qualquer explicação. Os torcedores, no entanto, não foram embora do estádio. Em 29 de agosto de 2019, os novos fãs dos clubes femininos ficaram no portão do estádio Alejandro Villanueva enquanto o Alianza Lima vencia o San Martín por 3 x 0. Ao fim do conflito, as jogadoras foram até os torcedores comemorar do lado de fora da arena (veja vídeo).

La Revolución en Peru: #QueremosSerVistas


No dia seguinte, ocorreu o mesmo com o duelo que reuniu dois dos melhores times do campeonato. Desta vez, o anúncio de que os portões seriam fechados foi feito um dia antes do jogo, mas depois que o Universitario colocou os ingressos a venda e as jogadoras já haviam convocado a torcida pelas redes sociais. Tudo corria com a indiferença da Federação Peruana de Futebol (FPF) e dos próprios clubes de antes até Steff marcar o gol da vitória do Universitário contra o Sporting Cristal, no estádio Campo Mar.

Na comemoração, a atacante imitou o gesto feito pela brasileira Marta quando se tornou a maior artilheira da história da Copa do Mundo, no mesmo ano, com os braços em posição horizontal, que simbolizam igualdade. No estádio não havia torcida, mas uma pessoa fotografou a comemoração, que ganhou a internet e, logo depois, as ruas. “Repercutiu muito, até o Go Equal (movimento que originou o gesto feito por Marta e reproduzido por Steff) entrou em contato comigo pedindo para eu fazer um vídeo”, conta Steff, orgulhosa.

A comemoração de Steff no jogo com portões fechados que motivou a campanha #QueremosSerVistas no futebol peruano

O gesto foi além: motivou uma marcha pelo futebol feminino, realizada pelas jogadoras em parceria com simpatizantes e a torcida que acompanha a seleção peruana masculina e se uniu também à causa feminina. “Foi uma revolução”, define Steff. Com as hashtags #QueremosSerVistas e #Igualdad, a luta pela equiparação nos campos de futebol do país virou um movimento. Além da falta de incentivo para a presença de torcida nas partidas, nenhum jogo era transmitido por televisão ou plataforma online até então. Ainda entraram nas reivindicações melhores condições dos campos em que atuam as equipes femininas. “Não somos meninas jogando futebol, somos jogadoras”, cobram.

Estádio renomado e casa cheia para final feminina

Universitario foi campeão da Zona Lima do Nacional sobre o Alianza no Estádio Nacional do Peru | Todo Sport

Com a repercussão, que ganhou apoio da própria Marta, a final da Zona Lima do Campeonato Nacional foi aberta ao público e em um local digno de decisão: o Estádio Nacional do Peru, onde as seleções masculinas de Brasil e Peru se enfrentaram pelas Eliminatórias da Copa do Mundo do Catar na última terça-feira (13/10). O clássico feminino da capital peruana contou com 9.903 presentes para acompanhar o Universitario ser campeão sobre o Alianza Lima, após vencer por 2 x 1, em 26 de outubro. “As jogadoras até ficaram um pouco assustadas, porque foi a primeira vez que aconteceu isso na história do futebol feminino do Peru”, relembra Steff.

Após esses episódios, a modalidade passou a ter mais visibilidade. Os clubes também começaram a ter páginas dedicadas às equipes femininas nas redes sociais e os jogos ganharam mais espaço na mídia, além de transmissões em plataformas digitais e rádios. “Fico feliz, porque as pessoas começaram a apoiar mais o futebol feminino. Antes, não conheciam nada”, diz Steff. Mas ela sabe que o caminho ainda é extenso rumo à uma profissionalização. No Peru, ainda não é possível que as jogadoras sobrevivam apenas do futebol. “O salário é de 400 pesos ou menos, então tem de conciliar os treinos com trabalho e estudos. Tanto que os times treinam três a quatro vezes por semana só”, lamenta Steff.

Situação que não muda muito nos países vizinhos. Steff ressalta essas condições para que não haja uma cobrança desproporcional com as atletas, agora, que cresceu o interesse do público pela modalidade. Comportamento que vai se replicando em várias partes do mundo. Após uma Copa do Mundo feminina histórica na França, em 2019, os Jogos Pan-Americanos embalaram uma série de mudanças na América do Sul. “A Colômbia também estava vivendo uma revolução no futebol feminino. No Chile e na Argentina, as jogadoras também estão na luta pela profissionalização. O Pan-Americano fez história.” Em 2020, a pandemia de covid-19 paralisou as competições e trouxe uma nova incerteza.

No Brasil, Steff segue com o Minas Brasília para a disputa do Campeonato Candango, em que o time busca voltar a conquistar o título que foi dono por três anos seguidos até 2019, quando perdeu na final para o Real Brasília. O Candangão Feminino contará com seis clubes e está previsto para começar em 28 de outubro e terminar no fim do ano. Após o encerramento da temporada, a atacante peruana adiantou que pretende buscar oportunidades em clubes da Europa. “Já tenho bastante experiência no Brasil e percebi que o nível da competição aumentou muito neste ano em comparação há dois anos. Mas meu desejo é também pegar experiência do futebol europeu”, explica.

Maíra Nunes

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